Vício intrínseco

A estreia na realização de Dan Gilroy é um dos mais notáveis filmes americanos recentes.

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É para filmes como este que o DVD e o video-on-demand são feitos. Estreado em pleno turbilhão de lançamentos de prestígio com os olhos postos nos Óscares, através de distribuidoras aparentemente distraídas quanto ao filme em mãos, Repórter na Noite foi ainda por cima mal recebido pelos críticos “institucionais” (mesmo o geralmente mais atento A. O. Scott, no New York Times, o olhou de soslaio).

Mas, no exacto momento em que a primeira realização do argumentista Dan Gilroy parecia condenada ao esquecimento, uma espécie de vaga de fundo de gente que nele viu outra coisa começou a vir ao de cima, e o boca-a-boca começou a funcionar a favor de um filme que escolhe mexer-se numa corda bamba desconfortável – para o espectador. 

O espectador sai com a sensação de estar sujo, e a sua visão no ecrã caseiro apenas parece concentrar ainda mais a dimensão perturbante desta história que é da Los Angeles dos nossos dias, mas também podia ser da Nova Iorque dos anos 1970, ou da Califórnia dos anos 1960. É da televisão que se fala, da mesma televisão que se alimenta da sordidez e do fait-divers, dos reality-shows e da exposição pública em busca das audiências a todo o custo. Mas é também de uma cultura que esconde por trás de chavões, soundbites, jargão corporativo o vazio do utilitarismo, de um mundo onde nada interessa a não ser o sucesso a todo o custo. 

Repórter na Noite

 é uma sátira mediática que faz pensar no 

Disposta a Tudo

 de Gus van Sant cruzado com o 

Grande Carnaval

 de Billy Wilder; o Louis Bloom de Jake Gyllenhaal é uma versão psicótica, esgazeada, alimentada a motor de busca, da Faye Dunaway do imortal 

Network

 de Sidney Lumet, a executiva capaz de tudo para garantir a vitória nas audiências. Parece ter sido para Bloom, o desempregado que encontra a sua vocação de 

paparazzo freelancer

 de cenas de crime quase por acaso, que se criou a citação “criámos um monstro” – porque Bloom é um monstro, uma espécie de 

idiot savant

 a meio caminho entre o Norman Bates do 

Psico

 de Hitchcock, o Travis Bickle do 

Taxi Driver

 de Scorsese e o jardineiro de Peter Sellers no 

Bem-Vindo, Mr. Chance

 de Hal Ashby, um auto-didacta frio, calculista, incapaz de empatia, que fala em clichés roubados a livros de auto-ajuda. 

Gyllenhaal é perfeito no papel: sem procurar gerar qualquer tipo de empatia, limita-se apenas a “ficar ali”, como um réptil que aguarda o momento de entrar em acção, que ignoramos com um misto de curiosidade e distanciamento até de repente abocanhar a sua presa para não mais a largar. É nesse momento decisivo que Gyllenhaal abre o jogo, e que Repórter na Noite revela a extensão do cinismo a que Bloom se entregou (e voltamos a lembrar-nos do Taxi Driver, embora virado do avesso e sem a dimensão redentora que Paul Schrader e Scorsese nele injectaram). E é também aí que percebemos porque é que o filme começou por passar ao lado: numa cultura que valoriza o imediatismo e a superfície, um objecto de tal modo escarninho e ácido levanta perguntas desagradáveis. Exige um tempo de decantação e de leitura que a “velocidade furiosa” das estreias não permite. 

De certo modo, Repórter na Noite é um “gémeo negro”, nocturno e vampiresco, do Vício Intrínseco solar e charrado de Paul Thomas Anderson (em comum têm o director de fotografia Robert Elswit). Nem seria descabido invocar os nocturnos pulsantes de Michael Mann, só que Gilroy (irmão de Tony Gilroy, argumentista da série Bourne e director de Michael Clayton, e filho do dramaturgo vencedor do Pulitzer Frank Gilroy) não filma um profissional, mas um obsessivo, um monstro de Frankenstein que aglomera tudo o que de pior há no ser humano. E o que torna este filme ainda mais inquietante é ele ser um acidente de automóvel para o qual não conseguimos deixar de olhar. É isso que Dan Gilroy queria. É exactamente isso que conseguiu. 

  

 

 

 

 

 

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