O caos chegou a Baltimore, onde a indignação se juntou à pobreza

Grupos de jovens queimam e pilham lojas, numa reacção violenta à morte de mais um negro num incidente com a polícia.

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Foram detidas duas centenas de pessoas e 15 polícias ficaram feridos Shannon Stapleton/Reuters

A cidade norte-americana de Baltimore acordou esta terça-feira em estado de sítio, com as ruas patrulhadas por milhares de polícias e membros da Guarda Nacional, e debaixo de um recolher obrigatório que vai limitar os movimentos dos seus mais de 600.000 habitantes durante uma semana.

A declaração do estado de emergência foi a resposta do governador do Maryland e da mayor de Baltimore a uma noite de extrema violência a apenas 60 quilómetros da capital, Washington D.C., numa onda de protestos marcada pela morte de mais um jovem negro após um incidente com a polícia, mas que explodiu em actos de vandalismo e pilhagens com mais causas do que as que cabem em mensagens emotivas disparadas nas redes sociais, e também em notícias dos jornais e das televisões.

O pano de fundo foi a morte de Freddie Gray, um jovem negro de 25 anos detido pela polícia no dia 12 de Abril no bairro de Sandtown, um dos mais problemáticos da zona Oeste de Baltimore, onde a pobreza quase faz esquecer que ali viveram estrelas do jazz como Billie Holiday e Cab Calloway.

Nesse dia, precisamente às 8h39 da manhã, Gray trocou um olhar com um agente da polícia de Baltimore durante um momento e tomou a decisão de fugir na direcção contrária, à medida que se aproximavam outros três agentes, montados em bicicletas.

O que se passou depois está ainda a ser investigado, e a versão dos polícias envolvidos não é contrariada pelas poucas imagens captadas no local, por câmaras de telemóveis e por uma câmara de vigilância – Gray foi detido sem oferecer resistência, arrastado para uma carrinha da polícia aos gritos e a pedir ajuda, enquanto uma testemunha chamava a atenção dos agentes para o estado de uma das pernas do jovem.

Apesar de nenhum vídeo revelar o que aconteceu momentos antes de Gray ter sido arrastado para a carrinha, uma testemunha identificada como Tobias Sellers disse ao jornal The Baltimore Sun que os seis agentes envolvidos "tiraram os bastões e bateram-lhe".

Pouco se sabe sobre o que aconteceu na viagem de meia hora entre aquela esquina no bairro de Sandtown e a esquadra da polícia, a não ser que a carrinha fez duas paragens até chegar ao destino, e que os agentes dizem ter amarrado os pés de Freddy Gray devido ao seu estado "irado".

A primeira vez que o jovem foi observado por um médico foi já na esquadra, meia hora depois do encontro inicial com os agentes. Pouco depois estava a ser levado para o hospital, onde chegou com "graves lesões" no cordão da medula espinal e na laringe, que especialistas citados pelo The Baltimore Sun dizem ser compatíveis com os efeitos de um acidente de automóvel, provocadas por uma "força significativa".

Gray viria a morrer por causa dessas lesões no dia 19 de Abril, e os agentes envolvidos foram suspensos até ao fim das investigações.

Desde o dia 12, mas principalmente desde que se soube da morte do jovem, as ruas de Baltimore foram palco de vários protestos, com momentos de tensão que deixavam adivinhar um cenário semelhante ao que aconteceu na cidade de Ferguson, no Mississippi, em Agosto do ano passado.

As mortes do adolescente Michael Brown e do jovem Freddy Gray ocorreram em situações distintas, e ambas foram também muito diferentes das que levaram à morte de Walter Scott, um homem de 50 anos, também negro, e também morto por um polícia branco, há menos de um mês, no estado da Carolina do Sul – Brown foi baleado por um agente que actuou dentro da lei, de acordo com um grande júri e com um relatório do Departamento de Justiça (que, no entanto, identificou um padrão de atitudes e comportamentos racistas no corpo de polícia de Ferguson); Gray pode ter sido vítima de violência policial extrema, mas a investigação está em curso; e Scott foi baleado oito vezes pelas costas, "abatido como um animal", nas palavras do seu irmão, Anthony Scott.

Seja como for, a sensação de que a polícia norte-americana (ou a prova de que essa sensação é bem real, no caso do relatório sobre Ferguson) visa essencialmente cidadãos negros, recorrendo ao uso da força – muitas vezes até à morte – com chocante leviandade, tem provocado protestos um pouco por todo o país. Na segunda-feira, foi a vez de Baltimore.

Os media norte-americanos dizem que na manhã de segunda-feira, antes do funeral de Gray, começou a circular nas redes sociais uma convocatória para uma "purga", numa referência a um filme de 2013 cujo argumento gira à volta de uma América totalitária, num futuro próximo, em que os cidadãos têm 12 horas por ano, entre as sete da noite e as sete da manhã, para poderem matar quem quiserem sem sofrer consequências.

Estes apelos a uma "purga" nas redes socias nos EUA não são novos, e não há provas de que alguma vez tenha acontecido algo semelhante ao que é retratado no filme – é um fenómeno mais próximo do alarme provocado por notícias sobre "meets" e "arrastões" do que um assunto para ser levado a sério.

Ainda assim, a polícia de Baltimore foi enviada para a zona do centro comercial Mondawmin, onde dezenas de jovens, quase todos adolescentes, se encontraram em resposta aos apelos nas redes sociais e começaram a lançar pedras, garrafas e blocos de cimento contra os agentes. Daí, os actos de violências espalharam-se até à rua onde Freddy Gray foi detido, em horas de caos que levaram à detenção de pelo menos 200 pessoas e deixaram 15 polícias feridos, seis deles com gravidade. Até à manhã de terça-feira tinham sido queimados 144 veículos e 15 "estruturas", entre as quais algumas lojas que também foram pilhadas.

Como é comum em situações semelhantes, há várias causas e motivações para os protestos violentos de segunda e terça-feira em Baltimore – e houve também quem tivesse tentado travar a violência, ainda que também eles se sintam revoltados com o comportamento da polícia. O The New York Times refere o caso de manifestantes de dias anteriores que impediram os jovens mais agressivos de destruírem lojas, e a mãe de um dos rapazes que se preparava para participar nos distúrbios, vestido de negro e com a cara tapada, foi filmada a levá-lo para casa aos empurrões, como se estivesse a repreender uma criança enquanto lhe torcia uma orelha.

Ptula Dvorak, uma jornalista que escreve sobre a vida na capital norte-americana, estava no bairro de Sandtown quando os jovens começaram a chegar, na segunda-feira à tarde, e foi derrubada e depois ajudada a levantar-se por elementos do mesmo grupo.

"Os miúdos – todos pareciam ser adolescentes – estavam furiosos. E quem não estaria, se tivesse crescido numa pobreza destas? A reacção deles – o ataque, e depois a ajuda – reflecte as emoções desse dia. Alguns gritaram 'Isto é pelo Freddy!' Outros só diziam palavrões e prometiam destruir a cidade, incitando os outros a serem mais violentos."

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