Banco de Portugal impõe mudanças no Montepio e afasta o mutualismo

A ministra das Finanças já tem em cima da mesa o novo regime jurídico das Caixas Económicas que facilita a abertura do banco a privados, mas também a outras mútuas, nomeadamente estrangeiras.

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Gestão de relações entre o banco e a associação mutualista tem sido, precisamente, fonte de preocupação para as autoridades
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Gestão de relações entre o banco e a associação mutualista tem sido, precisamente, fonte de preocupação para as autoridades Enric Vives-Rubio

O Banco de Portugal (BdP) recomendou que o próximo presidente executivo da Caixa Económica Montepio Geral (banco Montepio) se faça acompanhar de gestores independentes da actual administração liderada por Tomás Correia. Um sinal de preocupação quanto ao futuro, depois de esgotado o modelo de negócio seguido pelo banco da Associação Mutualista, com fortes conexões ao pólo de interesses que se estabeleceu em torno do grupo liderado por Ricardo Salgado.

Na calha para presidir ao banco Montepio está o ex-ministro das Finanças socialista e ex-presidente da Comissão do Mercado de Valores, Fernando Teixeira dos Santos, que gera consensos internos, numa instituição cuja gestão tem sido alvo de contestação por parte de associados. O PÚBLICO apurou, em todo o caso, que ao BdP ainda não chegou uma proposta formal com o nome do substituto de Tomás Correia, cujo mandato termina em Dezembro. O actual presidente executivo do banco Montepio já considerou o economista com “perfil e conhecimentos financeiros” para desempenhar o cargo.

No processo de mudança da gestão, a autoridade liderada por Carlos Costa deixou avisos que não podem ser desvalorizados: o próximo líder do banco Montepio deve fazer-se acompanhar de um administrador financeiro, mas também de alguém com competências no retalho – as duas áreas mais sensíveis de uma instituição bancária. Uma orientação que é um indício de que o regulador nos bastidores está a forçar mudanças no topo e a tentar acelerar uma maior autonomia do banco face à casa-mãe, a Associação Mutualista (AM), onde Tomás Correia se pretende manter.  

Nos últimos anos a supervisão bancária tem vindo crescentemente a tomar consciência da natureza do modelo de negócio desenvolvido no grupo mutualista com múltiplos pontos de contacto com o que foi adoptado por Ricardo Salgado. Por um lado, regista-se uma concentração do poder em Tomás Correia, que preside à AM, ao banco Montepio e ao Montepio Investimento; é da tradição do banco apoiar o crédito ao sector imobiliário/habitação, cuja carteira totaliza 7560 milhões (grau de incumprimento de 4,8%) e à construção, com uma carteira de 2678 milhões (grau de incumprimento de 41,7%); e o Montepio angaria junto dos seus clientes novos associados para a Associação Mutualista Geral que conta com 650 mil participantes, cuja quotização anual é de quase 11 milhões de euros (Salgado atraia clientes para serem accionistas das holdings cabeça de grupo). Por outro lado, verifica-se grande dependência do banco em relação à AM (no caso de Salgado, era o contrário, o BES é que estava exposto ao GES).

A fonte de preocupações
A gestão de relações entre as partes tem sido, precisamente, fonte de preocupação para as autoridades. Os números não deixam dúvidas: em 2014, os activos da AM totalizavam 4700 milhões de euros e 78% estavam aplicados em benefício do Montepio (88% incluindo os imóveis afectos a uso do banco).

As "coincidências" estendem-se ao modelo de financiamento pós-crise, que levou o BES a colocar dívida do GES junto dos clientes (em Setembro de 2013 a exposição da rede de retalho ao universo familiar ascendia a 2200 milhões). A rede comercial do banco Montepio tem promovido junto dos associados a subscrição de obrigações da instituição financeira e de títulos do grupo. Foi o que se verificou, em Dezembro de 2013, quando foi constituído o Fundo de Participação Caixa Económica Montepio Geral, para ajudar o banco a reforçar o seu capital, através da colocação de 200 milhões de unidades de participação (UP). A decisão dividiu os associados por quebrar uma tradição de 170 anos e abrir o banco Montepio a privados, nomeadamente à família do construtor José Guilherme,  o cliente do BES de quem Ricardo Salgado diz ter recebido uma prenda de 14 milhões, que se suspeita serem antes comissões de negócios não assumidos.

Na mesa da ministra das Finanças, Maria Luís Albuquerque, está já o novo regime jurídico das Caixas Económicas, que abrange o banco Montepio e que tem como orientação a separação da actividade bancária das entidades que representam os accionistas, o que facilita a supervisão do BdP. O problema é que a AM, tutelada pelo Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social, não responde perante a supervisão financeira, embora o ministro Mota Soares se tenha manifestado favorável a envolver a autoridade que fiscaliza os segurados e fundos de pensões. Por enquanto, não passe de uma intenção.

As especificidades do grupo mutualista, dado que a cabeça do grupo (AM) e o banco Montepio são entidades anexas (e até aqui têm partilhado o mesmo presidente), permitem levantar dúvidas: a maior divisão entre braços financeiro e não financeiro será suficiente para eliminar dificuldades? Ou seja, a falta de fiscalização da AM impede a eficácia da acção da equipa de Carlos Costa? Isto, tendo em conta que a preocupação do BdP está circunscrita a vigiar o banco Montepio, seguindo uma lógica conhecida: o BES é o BES e o GES é o GES. No Verão de 2014, a contaminação do GES ao BES revelou-se fatal.

Na medida em que a AM (que em 2013 teve prejuízos de 336 milhões) tem delegado e concentrado a gestão dos seus activos no banco, o risco principal é que o universo mutualista seja infectado pela área financeira. Entre 2013 e 2014, o Montepio assumiu prejuízos de 485,5 milhões e foi obrigado a constituir altas provisões (643 milhões).  Uma curiosidade: nas contas da AM de 2014, o banco está contabilizado por 1700 milhões, mais 500 milhões do que, no mesmo período, valia o BPI (o quarto maior banco do sistema com activos de 42.633 milhões de euros). Os activos do banco Montepio, o sexto maior, totalizavam 22.215 milhões.

Ao contrário da instituição financeira, cujos clientes com depósitos até 100 mil euros estão abrangidos pelo Fundo de Depósitos (em caso de insolvência os valores são restituídos), os 650 mil associados da AM estão menos protegidos. O que deveria ser razão de apreensão para as autoridades, nomeadamente, o governo e os supervisores (BdP, Comissão do Mercado de Valores Mobiliários e Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões).

Alguns quadros do BdP com quem o PÚBLICO falou admitiram que o tema mutualista os preocupa, nomeadamente pela vocação social e a sua abrangência na classe média. Mas não só por isso. Está também em causa um passo final no desmantelamento do núcleo de interesses que girou nos últimos anos em torno do GES, assente na PT, na Ongoing, no construtor José Guilherme e na Visabeira. Entidades que se articularam com o grupo mutualista, com reflexos nas contas do banco que, em Fevereiro, teve de constituir provisões da ordem dos 250 milhões, em resultado de crédito concedido, parte caucionado por títulos que perderam valor.

Queixas chegam ao BdP
Os apoios directos ao GES e BES ultrapassaram os 150 milhões, enquanto a Ongoing recebeu mais de 50 milhões. Na fase inicial, o grupo mutualista tornou-se parceiro de Nuno Vasconcellos e de Rafael Mora num fundo de private equity da Ongoing composto apenas por acções da PT registadas a 12 euros (quando apenas valiam 7,7 euros ), o que possibilitou aos dois gestores investirem na operadora sem endividamento bancário. Mais tarde, o investimento foi trocado por dívida directa da Ongoing e a exposição do grupo de Tomás Correia à holding aumentou. 

Por outro lado, as informações disponíveis no site mutualista, indicam que o filho de José Guilherme, Paulo Guilherme (18 milhões), o angolano Eurico Brito (10,5 milhões) e a Visabeira (1,805 milhões) são investidores do Fundo de Participação Caixa Económica Montepio Geral, e, na prática, “accionistas” de referência do Montepio. Paulo Nogueira Reis, ligado à Visabeira, é o representante no fundo que vai voltar a “mexer”.

Na última quarta-feira, pelas 23h50, o banco Montepio convocou os 21 membros da assembleia-geral para se reunirem a 30 de Abril. Para além da aprovação das contas de 2014 e da mudança parcial dos estatutos (15 dias depois de ter sido criado um grupo para estudar o dossier), o conselho de administração introduziu um ponto na ordem de trabalhos: a autorização de emissão de novas unidades de participação (que terão de ser no mínimo de 200 milhões) do Fundo de Participação Caixa Económica Montepio Geral. Uma proposta que indicia poder ser esta a via possível para o banco Montepio aumentar o capital, como impõe o BdP.  O PÚBLICO apurou que a operação pode dar entrada a outras mutualidades, nacionais ou estrangeiras, como o holandês Rabobank, de cariz cooperativo.

Depois do BPN, do BPP e do BES, a cena repete-se. E ao BdP já chegaram queixas de subscritores deste fundo que estão a ser reencaminhadas para CMVM, que também já recebeu reclamações. Os protestos, embora em número residual, apontam para situações em que, alegadamente, funcionários de agências (nomeadamente da zona de Viseu), promoveram junto dos seus clientes a passagem de depósitos para a compra das unidades de participação sem, segundo quem se queixa, lhes ter sido comunicado que o capital deixava de estar garantido. Outros afirmam terem sido desafiados a subscrever as unidades de participação com a promessa de obtenção de um rendimento de 5% ao ano, que não se verificou, com os títulos a serem transaccionados abaixo do valor inicial. Quando o banco Montepio revelou os seus resultados de 2014 em queda, o volume de transacções intensificou-se. No pico, em Março deste ano, foram vendidas 6 milhões unidades de participação. O mais activo a comprar tem sido o próprio banco Montepio.

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