“A pronúncia da língua corre o risco de ser desfigurada a breve prazo”

Esta entrevista a Vasco Graça Moura foi originalmente publicada em Abril de 2012, no número inaugural da revista O Cão Celeste, dedicado ao tema da ortografia, e reproduzimo-la aqui com a devida autorização.

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Quando a maior parte dos portugueses mal tinha ainda ouvido falar do Acordo Ortográfico (AO), Vasco Graça Moura foi um dos primeiros a perceber o que estava em causa e a assumir publicamente a sua oposição. Se há um rosto da luta contra o acordo, é o dele. Pela persistência, pela qualidade da argumentação, e até pela coragem, já que correu óbvios riscos políticos ao decidir suspender a aplicação do AO no Centro Cultural de Belém, para o qual acabara de ser nomeado.

Respondendo ao jornalista Luís Miguel Queirós, que o entrevistou por escrito para O Cão Celeste, considera que o risco mais grave que este acordo coloca é o de a pronúncia da língua vir a ser desfigurada já nas próximas gerações. Uma catástrofe que não foi atempadamente travada por quem a podia travar: políticos de todos os partidos, universidades, editores. Mas aos que acham que já é tarde para entrar numa guerra de antemão perdida, o poeta e tradutor Vasco Graça Moura lembra que “enquanto há língua, há esperança”.

Cão Celeste: Num livrinho de divulgação do Acordo Ortográfico (AO), João Malaca Casteleiro e Pedro Dinis Correia inventariam alguns argumentos que justificariam a pertinência do AO. Um deles reza assim: “Torna-se imperioso pôr cobro a uma deriva ortográfica de quase um século”. Tendo em conta que, ao longo do dito século, o português do Brasil se alterou a um ritmo francamente mais intenso do que o de Portugal, este AO não é, no essencial, uma tentativa – que as intocadas diferenças sintácticas e lexicais bastariam para votar ao fracasso – de forçar o português de Portugal a dar uma espécie de salto gigantesco para recuperar o “terreno perdido” para o do Brasil?
Vasco Graça Moura: Este acordo decorre de várias causas concomitantes: a obsessão da unificação ortográfica, que remonta pelo menos aos anos 30 do século XX, a reutilização de um dispositivo autoritário e que teria sido posto em marcha por dois regimes autoritários em 1945, de um modo impensado e sem atender às transformações geopolíticas, a permanência de uma atitude colonialista, ignorando necessidades ortográficas dos PALOP’s, a transposição quase mecânica de coisas que vinham de 1945, não se atentando em que a própria Linguística evoluiu muito. Por exemplo: o que é que significa uma «pronúncia culta» da língua? Quem estudou as pronúncias cultas? Quantas são? A de Luanda? a de São Luís do Maranhão? a do Maputo? a de Bragança? Outras? Ora é esse conceito indeterminado e indeterminável que é usado como referência para a supressão das impropriamente chamadas consoantes mudas. O que ainda por cima é agravado pelo acolhimento das chamadas «grafias facultativas», que em caso algum eram admitidas em 1945. O português de Portugal acabou por não dar salto nenhum: abriu a porta a uma terceira via ortográfica, que é a situação perfeitamente estúpida – e anti-acordo – que se está a viver.

O AO alteraria – de chofre, por assim dizer – o português europeu, mas nada indica que alterasse os seus padrões de evolução futuros. Dado que as duas variantes evoluem, mesmo ao nível ortográfico, e também na cadência de introdução de novos termos, a ritmos manifestamente diferentes, não iríamos precisar de constantes actualizações impostas por decreto para acompanhar o passo acelerado da variante brasileira?
O problema principal para nós (e para os mais de 50 milhões de seres humanos que seguem a norma portuguesa) é o de a pronúncia da língua correr o risco gravíssimo de ser desfigurada a breve prazo. Há outros problemas, mas esse é o mais grave. As próximas gerações portuguesas e africanas tenderão a ler «setor», «receção», «deceção», etc., sem acentuarem a primeira vogal. Já Óscar Lopes, há 25 anos, pensava que «adoção» (de adoptar) conduziria os africanos a pronunciarem «adução» (de aduzir) .Outros problemas prendem-se com o absurdo das regras do hífen e das maiúsculas. Não sei como é que seriam incorporadas as actualizações, num tratado que envolveu sete países e que já teve também a adesão de Timor. Repare que, como disse acima, nem sequer se fixaram regras para a incorporação de vocábulos de origem africana. E, no mínimo, seria necessário que estivesse fixado o Vocabulário Ortográfico Comum (exigido pelo acordo e que não existe). A partir dele, seria possível deduzir algumas regras mais ou menos estáveis para as actualizações.

Outro argumento invocado por Casteleiro e Correia é o de que o português é língua de trabalho de várias organizações internacionais, sendo por isso “urgente” que disponha de uma ortografia unificada. Dadas as já referidas diferenças sintácticas e lexicais, e tendo ainda em conta a profusão de duplas grafias que este AO consagra, não lhe parece que só por milagre um mesmo texto, ainda que breve, poderia seria escrito de forma absolutamente idêntica por um português e um brasileiro?
É um argumento sem qualquer consistência. Até agora nunca houve nenhum problema em nenhuma organização internacional. Na União Europeia, nos dez anos em que fui deputado, nunca houve o mínimo inconveniente por razões ortográficas. E lá existem inúmeros tradutores e intérpretes brasileiros. As diferenças complicadas e relevantes são semânticas. Suponha-se uma regulamentação internacional sobre transportes ferroviários que envolva Portugal e o Brasil: nós escreveríamos «comboios», enquanto os brasileiros escreveriam «trens». Não há acordo ortográfico que resolva estas questões… De resto, o acordo já consagra uma série de diferenças, por exemplo no tocante à acentuação de certas esdrúxulas: económico / econômico, anatómico / anatômico, etc., etc.

O terceiro argumento esgrimido pelos mesmos autores é de “natureza pedagógica”. Uma só ortografia, sustentam, tornaria a aprendizagem mais fácil nos vários países em que, “por esse Mundo fora” se ensina o português. Aceita esta alegação?
Não chega a ser um argumento. É uma infantilidade. Nos países em que por esse mundo fora se ensina o português, se se tratasse da França, da Alemanha, da Espanha, ou dos Estados Unidos, seria mais fácil ensinar o português a partir de grafias como «acção» ou «redacção», para dar só dois exemplos, porque o parentesco etimológico com as línguas deles seria mais visível.

Ainda no domínio da pedagogia, os defensores do AO, que assumem que este acordo privilegiou o critério fonético em detrimento do etimológico, têm insistido na ideia de que aproximar a ortografia da fonética facilita a aprendizagem. Admitindo que é verdade, não lhe pareceria mais sensato melhorar o ensino do que “baixar” a língua ao nível das presumidas (in)capacidades dos alunos?
É outra falácia. A escrita é uma convenção. Que dizer das desgraçadas criancinhas alemãs, francesas ou inglesas, que têm de aprender ortografias inverosímeis relativamente à maneira de as palavras serem pronunciadas. Por exemplo: Rheinunddonauschiffsfahrtsgesellschaftskapitän [traduzível por “capitão da companhia de navegação do Reno e do Danúbio”]… ou espoir, ou enough? Deve ser por causa dessa argumentação que no Dicionário da Academia, que o Prof. Malaca dirigiu, encontramos este mimo: croissã para croissant… As criancinhas devem ficar muito edificadas.

Percebe a razão de a subestimação da etimologia levar os autores do AO a suprimir, por exemplo o “c” em acto – fechando o “a” inicial, criando uma nova homógrafa, ocultando a raiz latina da palavra e distanciando o português de outras línguas europeias, como o francês, o inglês e o alemão – e, ao mesmo tempo, o critério etimológico ser invocado para manter, por exemplo, a dupla grafia “húmido / úmido”?
Já abordei a questão acima. Quando convém aos negociadores do acordo, invocam o uso ou a tradição, sem qualquer critério e sem qualquer espécie de lógica. Tratam as coisas como quem maneja um funil, ora pegando na parte larga, ora na parte estreita.

Não lhe parece que, de um modo geral, despojar as palavras dos seus traços etimológicos torna mais difícil, a alguém que se confronta com uma palavra que não conhece, deduzir o seu provável significado por analogia com outras palavras que partilhem a mesma raiz?
É claro que sim, e esse era um dos limites judiciosamente tidos em conta pelo acordo de 1945. As tais consoantes mudas, entre outros casos, eram mantidas após as vogais a, e ou o, quando não fosse invariável o seu valor fonético e ocorressem a seu favor outras razões, tais a tradição ortográfica, a similaridade do português com as demais línguas românicas, e ainda quando influíssem no timbre das referidas vogais (exemplos destes casos: acepção, adopção, abjecção, acção, arquitectura, circunspecção, contrafacção, projectar, retroactivo...). E também quando, embora mudas, devessem harmonizar-se com formas afins (exemplos: abjecto / abjecção, carácter / caracteres / didáctico / didactismo, insecto / insecticida).É importante manter a mesma imagem gráfica para o mesmo morfema lexical, de modo a facilitar-se o reconhecimento lexical na língua escrita. De resto, a "unidade românica" ultrapassa as próprias línguas latinas, abrangendo, em particular, uma grande parte do léxico em inglês, que é de origem latina.

Um dos argumentos mais frequentes dos entusiastas do AO é o de que a lógica de quem o contesta, a ter sido seguida no passado, faria com que ainda hoje escrevêssemos “pharmácia” e “photographia”. São estes dois os exemplos mais invocados. Tendo em conta que o francês e o inglês, que usam o “f” inicial em inúmeras palavras, abrem excepção para estas duas e para as que partilham a mesma etimologia (o mesmo é verdade para o alemão, salvo no caso de farmácia, já que Apotheke vem de outra palavra grega), acha que seria assim tão escandalosamente anacrónico que ainda hoje usássemos, nestes dois casos, o “ph”?
Os acordistas lançam mão do argumento mais estúpido e manipulador que lhes podia ocorrer. Nenhum dos ataques ao acordo visou restaurar dígrafos como «ph». Aqueles é que inventam o argumento, à falta de melhor… Note aliás que nenhum dos argumentos de fundo contra o acordo foi rebatido. Está-se no reino do «porque sim». Agora, em teoria, a mim não me repugnava nada escrever pharmacia ou philosophia. Teria de o fazer se escrevesse em francês ou inglês…

Não acha que, a par dos autores do AO e dos governantes portugueses que fizeram dele cavalo de batalha, como foi o caso do ministro da Cultura José António Pinto Ribeiro no governo de José Sócrates, a responsabilidade pelo facto de a luta contra este acordo poder ser já uma guerra perdida cabe também, em larga medida, a alguns editores portugueses, e em particular aos que dominam o mercado do livro escolar?
Acho que sim. Os editores e as universidades são os grandes responsáveis num terreno em que a batota e a irresponsabilidade dos políticos (de todos os partidos) foi a nota principal. Talvez venham a arrepender-se amargamente. Acabo de ler no Público um artigo do engº Vasco Teixeira, que era contra o acordo mas mandou aplicá-lo nas suas edições escolares, a reconhecer a perspectiva desastrosa criada pelo facto de Angola e Moçambique não terem ratificado o dito. Temos agora três grafias e a perspectiva de perder um negócio avultado de exportação de livros para esses países. Não é propriamente a descoberta da pólvora. Desde 1986 que eu venho a alertar para isso.

Quais pensa terem sido as verdadeiras motivações deste acordo?
Além daquilo que disse na resposta à primeira pergunta, as causas terão sido uma chocante desactualização científica no plano da linguística, uma metafísica aberrante e ultrapassada sobre o «império» da língua portuguesa, e provavelmente a intenção do negócio editorial para o Brasil tomar conta dos mercados africanos.

Pedro Passos Coelho terá escrito um email, antes de ser primeiro-ministro, em que manifestava reservas ao acordo (está hoje reproduzido em inúmeras páginas da internet e, que se saiba, nunca desmentiu que o tivesse escrito). Quando o Parlamento, em 2008, aprovou a entrada em vigor do AO, Paulo Portas absteve-se, contrariando o sentido de voto maioritário da sua bancada. Francisco José Viegas afirmou há dias que há coisas que devem ser aperfeiçoadas neste AO e que está convencido de que será ainda possível fazê-lo até 2015. Tendo em conta que estamos a falar do primeiro-ministro e dos responsáveis pelos Negócios Estrangeiros e pela Cultura, parece-lhe que ainda pode haver esperança num volte-face?
Costumo dizer que enquanto há língua, há esperança. A sociedade civil tem dado lições nesta matéria. A sociedade política não soube ainda aproveitá-las.

Algumas vozes, como a da ex-ministra da Cultura Isabel Pires de Lima, julgam que este AO dificilmente será abandonado de vez, mas sugerem uma espécie de terceira via, que passaria por uma revisão mais ou menos radical do seu conteúdo. Argumentam que o facto de este estar a ser criticado por figuras credenciadas em todos os países signatários deveria tornar possível levar os vários governos envolvidos a aceitar uma revisão. O que pensa desta possibilidade?
Uma revisão implica um novo tratado. Vamos a ver o que acontece: se Angola e Moçambique continuarem a não ratificar o acordo, como espero, as autoridades portuguesas terão de encontrar uma solução, que vai sair-nos muito cara. De resto não é difícil atalhar as coisas: nem o acordo está em vigor (porque não entrou em vigor na ordem jurídica internacional e por isso não pode entrar em vigor na ordem jurídica nacional), nem existe o vocabulário ortográfico comum que é pressuposto da sua aplicação. Quer dizer: cumprir o acordo será, neste momento, não o cumprir e, sobretudo, não adoptar a pantomina vocabular que anda por aí a ser aplicada como se do tal vocabulário se tratasse. Se se tratasse agora de estabelecer o vocabulário com intervenção de instituições dos países signatários, podia-se suspender o acordo, e ninguém perderia a face.

Além de criticar diversos aspectos do conteúdo do AO, tem-se destacado, entre os seus opositores, por trazer à colação argumentos de carácter jurídico, defendendo que, nas presentes circunstâncias – ou seja, com o tratado de 1990 ainda à espera das ratificações de Angola e Moçambique –, o acordo não pode entrar em vigor. Quer resumir os argumentos que o levam a sustentar esta posição?
Já o fiz acima, mas há ainda um ponto que deve ser tido em conta: a percentagem pretensamente exígua em que os defensores do acordo dizem que serão produzidas alterações na grafia da nossa língua baseia-se num vocabulário com 110.000 entradas. Ora, só o dicionário Houaiss tem qualquer coisa como 228.000. E o António Emiliano já chamou a atenção de que, no caso dos verbos afectados, cada um deles terá de ser multiplicado por 40 ocorrências…

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