A saga de intolerância de Nangnou, retida há 23 dias no aeroporto de Barajas

Nangnou fugiu dos Camarões procurada pela polícia e sob ameaças de morte por ser homossexual. Mas Espanha não lhe dá direito de asilo e já tentou deportá-la quatro vezes.

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Christelle Nangnou diz que as autoridades espanholas já tentaram várias vezes forçá-la a apanhar um avião de volta aos Camarões Yorgos Karahalis/Reuters

Christelle Nangnou está confinada há 23 dias a uma sala do aeroporto de Barajas, em Madrid. Fugiu dos Camarões procurada pela polícia, rejeitada pela família e sob ameaças de morte por ser homossexual. À chegada, o Governo espanhol recusou-lhe o pedido de asilo e a entrada no país porque o Ministério do Interior não acredita na sua história.

É uma ordem do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que mantém Nangnou no aeroporto de Barajas e evita a sua deportação, pelo menos até ao dia 17 de Abril. Até lá, a camaronesa de 29 anos terá de provar que é perseguida nos Camarões devido à sua orientação sexual.

A homossexualidade é considerada crime nos Camarões. O país é um dos que mais condena cidadãos pela prática da homossexualidade, de acordo com um relatório publicado pela orhanização Human Rights Watch. As penas vão de seis meses a cinco anos e há vários relatos de abusos policiais e de violência contra homossexuais. "Se voltar, serei condenada porque no meu país não aceitam a minha sexualidade", disse Nangnou ao diário espanhol El País.

A fuga de Nangnou começou há pouco mais de um mês. De acordo com o seu relato ao El País e ao site espanhol eldiario.es, as autoridades camaronesas foram procurá-la pelo crime de homossexualidade a casa dos seus pais, mas não a encontraram. A partir desse momento, soube-se que Nangnou era homossexual. "O tema estendeu-se por toda a minha comunidade de um dia para o outro; recebi cartas ameaçadoras, incluindo ameaças de morte, por isso decidi fugir", disse Nangnou ao eldiario.es. A rejeição, disse Nangnou, partiu dos próprios familiares"A minha própria família disse-me que me repudiava."

Christelle Nangnou está impedida de receber visitas na sala a que está confinada no aeroporto de Barajas – a chamada "sala dos inadmitidos". Por telefone, Nangnou explicou ao El País que, antes de voar para Madrid, esteve escondida durante nove dias na Nigéria, na casa de uma amiga.

Aterrou em Espanha no dia 25 de Março. À chegada, as autoridades espanholas descobriram que Nangnou viajava com um documento de identificação falso e detiveram-na. Foi então que pediu asilo ao Ministério do Interior de Espanha. Mas o pedido foi-lhe negado.

"O Ministério do Interior recusou o seu pedido porque não acreditava na sua história", disse ao El País o advogado de Nangnou, Eduardo Gómez. Isto aconteceu mesmo tendo Nangnou consigo o recorte de um jornal camaronês em que é apresentada como "a líder de um grupo de lésbicas".

Em seguida, Eduardo Gómez apresentou um recurso da decisão do Ministério do Interior, que está ainda a ser analisado. Mas a Audiência Nacional – a mais alta instância jurídica em Espanha – não autorizou que Nangnou permanecesse no país até deliberar sobre o recurso. Só o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem congelou a decisão de expulsar Nangnou.

Expulsão à força
Enquanto lutava com a lei espanhola para permanecer no país, Nangnou afirma que teve também de lutar fisicamente com as autoridades, que quiseram por quatro vezes colocá-la à força num avião de regresso para os Camarões.

"Da última vez ataram-me as mãos e atiraram-me contra o chão. Não conseguia respirar", disse Christelle Nangnou ao El País.

Nas declarações ao eldiario.es, publicadas no domingo, Nangnou fez referência apenas a três tentativas de expulsão forçada e descreveu os ferimentos com que ficou. "Tentaram expulsar-me e meter-me num avião três vezes, mas eu resisti. Tenho um corte no olho direito, uma unha arrancada, dói-me todo o corpo e estou zonza de todo o confronto", disse então.

As autoridades estavam precisamente a tentar pôr Nangnou novamente num avião, "possivelmente sedada", como afirmou o seu advogado ao eldiario.es, Eduardo Gómez, mas a ordem do tribunal de Estrasburgo chegou a tempo e Nangnou regressou para "a sala dos inadmitidos". 

A maior prova que Christelle Nangnou tem com ela é o recorte de um jornal camaronês no qual, para além de a tratar como a "líder de um grupo de lésbicas", se oferece uma "recompensa" para quem tiver "informações que possam conduzir à sua detenção". Esta é uma das provas pedidas pelo Tribunal Europeu para fazer valer o pedido de asilo, para além das declarações de Nangnou às autoridades do Gabinete de Asilo e Refúgio, mas que não foi aceite pelo Ministério do Interior espanhol como indicação de que Nangnou está, de facto, em fuga.

Eduardo Gómez admite que Christelle Nangnou não apresentou imediatamente o recorte do jornal às autoridades espanholas e que foi hesitante nas suas primeiras declarações. "Num primeiro momento, ela não apresentou o recorte de imprensa porque não o tinha. Para além do mais, a sua história não parecia credível porque ela entra muito em dúvidas". Algo que, diz o advogado, é normal dada a sua situação: "Nos Camarões, a homossexualidade castiga-se com muita dureza e não é fácil falar da sua orientação [sexual]", explicou ao El País.

"Apartheid anti-homossexual"
Os Camarões têm um dos regimes anti-homossexualidade mais severos do mundo. Alice Nkom, uma advogada que se especializou na defesa de casos de indivíduos acusados do crime de homossexualidade nos Camarões e premiada pela Amnistia Internacional, disse mesmo que estava em vigor um "apartheid anti-homossexual" no país.

De acordo com um relatório publicado em 2013 pela Human Rights Watch, os Camarões condenam indivíduos pela prática de homossexualidade sem provas e, frequentemente, com testemunhos obtidos através de tortura. "Os investigadores dependem frequentemente de tortura ou de maus-tratos para extraírem confissões", lê-se no relatório da organização. 

O relatório analisa a progressão das condenações por homossexualidade nos Camarões e chega à conclusão de que existiram ondas de condenações. A primeira com início em 2005 e depois, novamente, em 2010 e 2011. Desde Janeiro de 2010 até Março de 2013, registaram-se 28 acusações de homossexualidade nos Camarões.

A Human Rights Watch afirma que existe um clima de homofobia que transpira para os tribunais, Governo e media do país. O recorte de jornal que Christelle Nangnou tem consigo em Barajas é prova disso. Nele lê-se: "Apesar da posição clara do Governo frente à homossexualidade, é alarmante o aumento desta prática satânica na nossa sociedade."

A lei nos Camarões aplica-se à prática pública de actos homossexuais, mas nenhum dos casos analisados pela Human Rights Watch tinha algum indício de que isso acontecera.

Um habitante de Limbe, nos Camarões, contou à Human Rights Watch o caso de um seu conhecido, detido sob suspeitas de ser homossexual. "Agrediram-no com um cinto de ferro, disseram-lhe que nadasse numa sarjeta e queimaram sacos de plástico no seu peito", escreve a organização de defesa dos direitos humanos.

"A maneira como a lei é aplicada nos Camarões parece sugerir que, se alguém é suspeito de ser gay ou lésbica, os seus direitos humanos, como o direito a um julgamento justo e o direito a não ser torturado, deixam de se aplicar", afirma Neela Ghoshal, da Human Rights Watch. 

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