Turismo: “Há cada vez mais gente a viajar para comer”

O que é que um molho picante da Abkházia pode ensinar a Portugal? Matt Goulding, um dos criadores do site de reportagens Roads and Kingdoms e autor de uma nova colecção de guias gastronómicos, veio ao Estoril falar da actual "Era Dourada do Turismo Gastronómico" e das histórias que os países têm para contar.

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Pode a história de um molho picante, de intensa cor vermelha, ajudar-nos a perceber um país? Vale a pena um jornalista contá-la? O Roads and Kingdoms nasceu precisamente para contar histórias como essa, afirma o jornalista norte-americano Matt Goulding, um dos criadores daquele site, e um dos oradores da World Food Turism Summit, que decorreu entre os dias 8 e 11 no Centro de Congressos do Estoril.

Matt Goulding escreve sobre comida. E acredita que ao contar estas histórias está a contar muito mais. “A história do adjika [um molho picante usado na culinária da Abkházia] é um dos melhores exemplos disso”, explica. “Um dos nossos jornalistas estava a entrevistar o Presidente da Abkházia, estavam a falar de assuntos políticos e ter respostas um pouco aborrecidas e de repente o repórter fala-lhe na adjika e o Presidente dá um salto, entusiasma-se e diz-lhe que lhe vai indicar o melhor sítio para comprar adjika”.

No texto, o jornalista, Oliver Bullough, descreve a sua surpresa quando o Presidente Alexander Ankvab se põe a imitar os gestos de esmagar especiarias para fazer o molho e pede a um dos seus assistentes que organize uma ida de Bullough ao mercado para conhecer a mais famosa banca de adjika.

Não se trata de uma questão menor: “Este molho está no centro de uma disputa eterna entre os habitantes da Abkházia e os da Geórgia, inimigos de sempre. No mercado, o repórter falou com uma série de pessoas sobre o significado do molho para o orgulho nacional dos abkhazes. E a história que fez é sobre comida, mas na realidade é sobre identidades e rivalidades regionais”.

No World Food Turism Summit, organizado pela Associação Portuguesa de Turismo de Culinária e Economia (Aptece), vários oradores portugueses e estrangeiros falaram sobre a importância da gastronomia para o turismo – em geral, e também no caso de Portugal. Na sua comunicação, Matt Goulding voltou a exemplos como o do restaurante Noma, em Copenhaga, Dinamarca que ao ser considerado o melhor do mundo na lista The World’s 50 Best Restaurants acabou por ter um enorme impacto na cidade, onde o turismo cresceu 15%, em grande parte devido a este “efeito Noma”.

“Há cada vez mais gente a viajar para comer”, diz Matt Goulding numa entrevista ao PÚBLICO no final da sua intervenção, que se chamava precisamente "A Era Dourada do Turismo Gastronómico". É uma tendência que começou há algum tempo e que ainda não deu mostras de abrandar. Daí que faça sentido que um site de reportagens que “não saem nos jornais mainstream”, como é o Roads and Kingdoms, tenha uma secção dedicada apenas a histórias com comida.

“Para mim, o maior risco que se corre neste meio é o de contar sempre a mesma história. Lemos todo o tempo as mesmas histórias sobre a mesma meia dúzia de chefs e de países nas revistas de comida, nas secções de comida dos jornais ou nos blogues especializados. Eu prefiro que alguém me conte uma história fora dessa esfera”, afirma.

O projecto começou quando Matt, que trabalhou durante anos para a revista Men’s Health e é co-autor da série Eat This, Not That, do The New York Times, e o seu amigo Nathan Thornburgh, correspondente e editor da revista Time, decidiram que precisavam de um espaço para contar as histórias que habitualmente não chegavam aos jornais e revistas tradicionais. “Temos imenso respeito por estas publicações, mas há uma voz que tem que se criar quando se escreve para elas, e nós sentíamos que havia tanta informação incrível que era deixada de fora porque não cabia nestas fórmulas. E queríamos mesmo contar essas histórias”.

Assim, Matt pode andar por Bolonha, em Itália, à descoberta do ragu, enquanto outros colaboradores do site mergulham no “estranho e maravilhoso mundo da pizza coreana” ou da cerveja de banana. O Roads and Kingdoms tem vários formatos (pode, por exemplo, contar uma mini-história apenas num post no Instagram, com imagem e um pequeno texto), mas aposta claramente em textos mais longos, um formato para o qual Matt garante que existem leitores na Internet.

“É claro que quando nos apresentamos como publicação de formatos longos estamos logo a afastar um certo sector dos leitores”, reconhece. “Temos que ser realistas em relação a isso. A verdade é que a maior parte das pessoas não quer ler cinco mil palavras sobre um molho picante na Abkházia. Percebo. Se publicarmos uma história sobre os dez melhores molhos picantes do mundo teremos dez vezes mais leitores e isso é uma realidade frustrante, porque um clique continua a ser um clique aos olhos de muitos anunciantes.”

Preferem, por isso, não ter um modelo de negócio baseado em números de visualizações. “Não faz sentido pagar a um jornalista para passar imenso tempo a escrever uma história linda sobre molhos picantes quando podemos pagar a um estagiário para escrever numa hora uma história que vai ter mais cliques”. Têm, no entanto, que pensar no lado financeiro do projecto. “Sentimos que há um novo modelo de negócio a surgir no qual nos podemos posicionar como bons contadores de histórias e ter marcas que queiram trabalhar connosco.”

E isto tem a ver com um novo projecto que Matt apresentou também no auditório do Estoril: uma série de guias de viagem centrados na gastronomia. O primeiro já está pronto, será lançado dentro de alguns meses, será sobre o Japão e tem como título Rice, Noodle, Fish: Deep Travels Through Japan’s Food Culture. Não se trata de um guia de viagens tradicional, com listas de lugares a ir e de pratos a experimentar – esses, sublinhou Matt, têm estado a sofrer sérias quedas nas vendas por terem sido ultrapassados pela quantidade de informação disponível online. “O que nós fizemos foi contar histórias profundas sobre pessoas, que ajudam a explicar a comida japonesa. São histórias que os leitores não vão encontrar em mais lado nenhum, e acreditamos que existe um público para elas.”

A par da edição em papel, os guias terão um lado digital com informação mais prática. “Esperamos que tenha alguma influência em mudar a estrutura de um guia e a forma como as pessoas o consomem”. E como trabalham com as marcas? “Editorialmente temos que nos basear na mesma integridade em que o jornalismo da velha escola sempre se baseou, separando o comercial do editorial.”

Mas está convencido de que há formas diferentes de trabalhar com as marcas, que podem, por exemplo, associar-se ao lançamento do guia, ou apresentar-lhes outras propostas de colaboração que estão abertos a discutir, com a garantia, no entanto, de que não estão dispostos a comprometer a sua integridade editorial. “Há histórias que são fundamentais para o que acreditamos. E isso é o mais importante ao tentar estabelecer um modelo nesta nova era dos media. Mas temos que ser flexíveis, se nos fechamos a um certo estilo de negócios provavelmente acabamos por morrer.”

E como pode um país – neste caso Portugal – aproveitar este interesse pelo turismo gastronómico e esta vontade de contar histórias em torno da comida? Na sua apresentação Matt Goulding tinha referido dois factores que considera fundamentais: ter uma boa história para contar e ter uma personalidade carismática que a conte, que pode ser um chef (e geralmente é). Mas, reconhece, trata-se de “uma fórmula difícil”.

“E mesmo que se consiga ter ambas as coisas, não significa necessariamente que vá acontecer. É algo que demora tempo, e também sabemos que há muita política por detrás da promoção de destinos gastronómicos. O governo tem que fazer parte disso, os governos locais têm que apoiar.” Depois, há todo um trabalho que tem que ser feito por quem está ligado à gastronomia. “É preciso falar com as pessoas certas, na altura certa, para fazer passar a mensagem. Os vossos melhores chefs têm que ser amigos de outros grandes chefs, para serem reconhecidos por estes e depois pela imprensa, que passa a palavra ao público. É uma espécie de câmara de eco, que se torna mais e mais ruidosa.”

Mas acredita que Portugal tem as condições para conseguir isso. “As peças estão todas aí: a história, a geografia, o clima, os ingredientes, o carácter do povo português, que é uma coisa que não se consegue inventar.” Volta ao exemplo da Dinamarca e do Noma. “Foi surpreendente, porque eles não tinham essa cultura, mas o facto de mesmo assim terem sido capazes de encontrar uma narrativa transformadora representa uma grande esperança para Portugal, que parte já com as condições de base.”

Convidar jornalistas estrangeiros a visitar o país, como aconteceu com a World Food Turism Summit (paralelamente à qual decorreu também um festival europeu de comida de rua, em frente ao Casino do Estoril) é um princípio, diz Matt. “Daqui podem sair 15 histórias que podem ser vistas por dez mil pares de olhos, e é assim que as coisas se multiplicam”. Só é preciso que um destes jornalistas encontre o “molho picante” que vai revelar muito mais sobre a identidade do país do que parecia à primeira vista.

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