Escolas e empresas de trabalho sazonal são foco de luta contra tráfico humano

Os primeiros resultados sobre o projecto Comunidades Activas contra o Tráfico são esta quinta-feira apresentados numa conferência na Fundação Gulbenkian em Lisboa. "É na escola que estão os grupos de maior risco do tráfico: os jovens entre os 14 e os 18 anos."

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Nas escolas existe um grande movimento e casos de tentativa de tráfico de jovens com a promessa de serem contratados por um clube de futebol ou como modelos PÚBLICO/Arquivo

O Alentejo, e em especial o distrito de Beja, apresenta um especial risco de existência de tráfico de pessoas para exploração laboral. Cidadãos da Roménia, Bulgária, entre outros países, e mais recentemente Nepal, Tailândia, Vietname, entre outras origens da Ásia, são trazidos para trabalhos temporários aqui, ou noutros pontos de Portugal – para a apanha da fruta ou para outras campanhas como a da azeitona, consoante a estação do ano – da mesma forma que portugueses podem ser levados para Espanha ou outros destinos europeus.

Os trabalhadores podem circular por diferentes herdades numa mesma região ou deslocar-se entre regiões e prolongar a sua estadia. Não ganham mais de cinco euros por um dia de 12 horas de trabalho e assinam um contrato com uma agência de trabalho temporário, numa “aparência de legalidade”, explica o investigador Miguel Santos Neves, que apresenta esta tarde os resultados de uma primeira fase do projecto Comunidades Activas contra o Tráfico na Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa – um projecto desenvolvido pela NSIS (Associação de Estudos Estratégicos e Internacionais) nas freguesias de São Teotónio, no distrito de Beja, e da Pontinha-Famões, no distrito de Lisboa, pelos riscos que estas localidades apresentavam. Beja pela predominância deste tipo de empresas de trabalho sazonal; e Lisboa, pelos relatos cada vez mais frequentes de tentativa de aliciamento de jovens à porta das escolas.

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 As acções permitiram, até agora, chegar a uma primeira conclusão: "Este fenómeno tem uma expressão maior do que imaginávamos", sobretudo quando o objecto da análise são as duas escolas da Pontinha-Famões, no concelho de Odivelas. "Aqui começa a ser muito claro que existe um grande movimento e casos de tentativa de tráfico” de jovens com a promessa de serem contratados por um clube de futebol ou como modelos.

O projecto, financiado pelo Mecanismo Financeiro do Espaço Económico Europeu (EEA Grants) tem a ambição de chegar a outros pontos do país, e replicar estes exemplos, em particular o modelo desenvolvido na Pontinha, com o envolvimento de pais, alunos e professores, em escolas noutros concelhos, e com a criação das Comunidades Activas contra o Tráfico (CAT). 

“A escola é o actor estratégico, embora não o único, para a prevenção. E deve ser o ponto de entrada da prevenção. É na escola que estão os grupos de maior risco do tráfico: os jovens entre os 14 e os 18 anos”, explica Miguel Santos Neves, que preside a NSIS. “Se estiverem alertados, os professores mais facilmente identificam situações de perigo.”

Aconteceu recentemente: uma professora estranhou o comportamento de uma aluna adolescente e “soube interpretar os sinais” por estar sensibilizada para as questões do tráfico. Percebeu que a jovem de nacionalidade portuguesa estava prestes a ser vendida pelo pai a um homem mais velho. O caso está a ser investigado pela Polícia Judiciária e é um exemplo, reforça Santos Neves, de que “o esforço de consciencialização resulta”.

"Boas práticas" em empresas
Essa consciencialização está a chegar a algumas empresas de Odemira, dispostas a adoptar “boas práticas”. “A nossa expectativa é que estas empresas sejam um bom exemplo para outras de outros pontos do país.” O Ribatejo também representa um risco particular, diz, notando que os dados oficiais, que apontavam em 2013 para 299 vítimas sinalizadas em Portugal (ver infografia) mostram apenas uma parte da realidade, havendo "muitos casos" não sinalizados ou não reportados, "até porque muitas vezes as pessoas continuam sob ameaça".

O projecto, que já começou e decorre até Dezembro de 2017, traduz-se em iniciativas de formação e sensibilização para o combate do tráfico através da prevenção de um fenómeno que é do passado mas continua “no presente”. Muito recentemente, algumas empresas no concelho de Odemira foram contactadas por uma agência que oferecia trabalhadores nepaleses a baixo custo. Esses intermediários provavelmente serviam o interesse dos traficantes, salienta o investigador. “Se as empresas estiverem alerta vão recusar e perceber que em causa estão pessoas traficadas.” São as agências quem, na maioria, recruta. Mas também podem ser particulares – desconhecidos ou, nalguns casos, familiares das vítimas.

No relatório A protecção dos Direitos Humanos e as Vítimas de tráfico de pessoas, com data de Outubro de 2012, a NSIS já relatava a existência de uma agência de trabalho temporário internacional, com registo em Portugal: a DFRM International Services SA, sediada em São Teotónio, e que na altura contratara apenas trabalhadores tailandeses. A agência funcionou, sem qualquer restrição, durante mais de dois anos e fechou portas em 2013 "quando começou a existir alguma fiscalização sobre o estatuto dos trabalhadores agrícolas no Alentejo”, refere o relatório.

“As empresas, embora muitas vezes não directamente implicadas, recebem os trabalhadores e têm que ter um cuidado especial", diz Miguel Santos Neves. “Podem e devem exigir garantias como, por exemplo, introduzir o pagamento directamente ao trabalhador, e fazer o depósito na sua conta.” Os trabalhadores têm contrato com as agências que pagam um mínimo, justificando que o resto será para abater na dívida (da viagem).

A pressão psicológica de uma dívida – a da viagem cujo dinheiro foi adiantado pela agência de trabalho temporário que as contratou – resulta naquilo a que se chama de “servidão por dívida”. “É assim que nasce a enorme capacidade de controlo que os traficantes exercem”, explica Miguel Santos Neves, que no seu trabalho de investigação, resultante no relatório, identificou casos de trabalhadores da Tailândia a receber 50 euros por mês.

O projecto existe para encorajar as comunidades, mas também as empresas, a fazer “exigências de forma concertada” percebendo que “não têm interesse” em aceitar as regras dos intermediários, pois acabam por pagar o mesmo valor à agência, sendo esta quem lucra com a quantia mais baixa recebida pelo trabalhador.

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