“Cada país tratou egoisticamente da sua situação” no caso da hepatite C

A gestão política e mediática do acordo para tratar os doentes com hepatite C com os novos medicamentos foi "um bocado má", mas o acordo estava iminente, diz António Ferreira

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António Ferreira, presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar de S. João DR
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No hospital de S. João, há 900 doentes diagnosticados e mais de 120 têm condições para começar de imediato a receber os tratamentos. Rui Farinha/NFactos

António Ferreira, presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar de S. João, um dos três maiores do país, acredita que o acordo obtido entre o Governo e o laboratório Gilead Sciences para o fornecimento de dois antivirais aos 13 mil doentes já diagnosticados é histórico porque vai permitir eliminar a hepatite C em Portugal em vez de tratar apenas os pacientes em situação crítica, como preferiram fazer outros países europeus. No seu hospital, há 900 doentes diagnosticados e mais de 120 têm condições para começar de imediato a receber os tratamentos.

Como interpreta o acordo obtido na semana passada para tratar com dois antivirais da Gilead cerca de 13 mil doentes com hepatite C?
A minha posição foi sempre a de que a hepatite C é uma das mais graves pandemias actuais. Há 180 milhões de pessoas afectadas em todo o mundo. Portanto, uma estratégia baseada em tratar doentes com os medicamentos antigos não serve, sejam eles o interferão ou os [antigos] antivirais. Uma estratégia como a que foi adoptada pela maior parte dos estados europeus, e que passa por tratar [com os novos antivirais] apenas os doentes que estão na fase terminal, também não serve. Como a hepatite evolui durante 10, 20, 30 anos, quando chega a estádios finais o doente já tem cirrose, varizes esofágicas, e matar o vírus já não reverte nem melhora substancialmente a sua situação.

Era esse o caso da doente que morreu em Lisboa na semana passada, depois de ter estado vários meses à espera de um medicamento inovador para a hepatite C?
Não posso falar de casos concretos. Quando se começa a tratar uma pessoa que já tem varizes esofágicas, a cura do vírus consegue-se, mas a pessoa pode morrer de uma hemorragia digestiva ou de uma complicação. Portanto, sempre defendi tratar todos os doentes. Se se tratar só os mais avançados, a epidemia continua, o vírus  mantém-se em circulação. O objectivo é eliminar a doença.

O acordo implica tratar os 13 mil doentes já diagnosticados e referenciados nos hospitais?
Não serão só esses. Essa é a 1ª fase. Em Portugal haverá à volta de 50 mil doentes com hepatite C.  A efectividade destes novos medicamentos, usados em associação e tomados por via oral (o tão falado sofosbuvir da Gilead, mais outros antivirais como o simeprevir, o daclatasvir, de outros laboratórios, e, recentemente, o ledipasvir, também da Gilead), conseguem-se taxas de cura superior a 90%. Ora isto é melhor do que a maior parte dos antibióticos. O que sempre defendemos é que, para tratar toda a gente, é preciso preços compatíveis. 

Mas já defendeu isso publicamente em meados do ano passado. Não acha que o acordo demorou tempo de mais?
Foi preciso delinear um plano nacional, definir uma estratégia, fazer muitas contas para quantificar valores em causa. Houve negociações complexas e difíceis feitas debaixo de uma pressão aceitável por parte dos doentes, mas inaceitável por parte de muitos players com conflitos de interesses.

Quem? O laboratório? As associações de doentes?
As associações de doentes não tiveram todas a mesma posição. Há um movimento internacional de doentes em que pelo menos o GAT [Grupo Português de Activistas sobre Tratamento de VIH/Sida] estava  envolvido e que defende que os medicamentos devem ser fornecidos a custo acessível que permita a sobrevivência do SNS [Serviço Nacional de Saúde]. Até para as farmacêuticas faz todo o sentido porque destruir o SNS acaba com a galinha dos ovos de ouro.

Mas o que fica para a história é que o acordo só avançou porque foi noticiado que uma paciente morreu à espera do medicamento e porque outro doente interpelou o ministro no Parlamento e lhe pediu para não o deixar morrer.
Isso é completamente falso. Eu acompanhei de perto esta evolução. O acordo estava iminente, faltava apenas um último encontro, as negociações tinham começado muito antes.

Então foi uma coincidência extraordinária? Não admite que a imagem do ministro ficou muito chamuscada?
Não me faça perguntas sobre orientação política. O que acho é que a gestão política, mediática, foi um bocado má.

Por que razão faz questão de dizer que este é o melhor acordo dos países desenvolvidos?
Do que eu conheço, não tenho dúvida. Espanha, por exemplo, tem um acordo, o custo lá é de 25 mil euros e destina-se a tratar apenas os doentes em estádios mais avançados.

Preferiram começar por aí.
É um absurdo.

Mas, em Portugal, ainda recentemente o presidente da Autoridade Nacional do Medicamento ( Infarmed) falava num consórcio de países europeus como forma de fazer pressão sobre o laboratório.
Não estive envolvido. O que sei é que cada país tratou egoisticamente da sua situação. Os governos europeus e as agências dos medicamentos não têm nem coragem nem vontade de regular um mercado que é verdadeiramente usurpador do interesse dos doentes e dos sistemas de saúde. Nenhuma empresa que se destina a produzir medicamentos  é benemérita e isto é absolutamente respeitável. Não me estou a armar em revolucionário  de extrema-esquerda.  Mas acho que preços como este são absolutamente imorais e de uma ganância inaceitável.

Criar um medicamento inovador é um processo demorado e muito caro. Não é por isso que se pedem preços altos?
É falso, as pessoas não se informam. Vá ver ao site da Gilead.

O que se diz é que a Gilead terá comprado a patente do sofosbuvir a outra empresa por cerca de 11 mil milhões de dólares.
Então vá ver qual foi a facturação em 2013 e 2014, só com o sofosbuvir [de um total de 139 milhões de dólares no ano em que foi lançado, as vendas passaram para 10.283 milhões, em 2014, segundo o site da empresa]. A investigação em medicina é cara e por várias ordens de razões, uma das quais é o facto de ser preciso fazer ensaios clínicos. Ninguém põe em causa que, quando se cria um produto, tem que haver uma margem de lucro. O que está em causa é que essa margem seja de 8 mil por cento, 7 mil por cento e que o preço seja formado, não com base na retribuição justa daquilo que se investiu, mas com base em contas do tipo: a sociedade vai poupar por cada doente 100 mil euros. Isto é inaceitável, não é maneira de chegar a preços, é uma forma de chantagear a sociedade.

Então os outros países deixaram-se chantagear? Mas como é que se resolve este problema? Porque vão surgir mais medicamentos inovadores, há já outros na calha. Como se lida com a inovação?
Não há na União Europeia uma estratégia comum. Veja um exemplo: pego numa lata de leite em pó para as crianças. Imagine que se estabelecia o preço com base no benefício que a utilização desse leite em pó traz para a sociedade, levando em conta a taxa de mortalidade nos primeiros anos [e outros indicadores]. O leite poderia então custar 200 mil euros.

Qual foi o preço final acordado com a Gilead?
O acordo é confidencial. Mas sei que é destinado a poder tratar 13 mil doentes de uma forma que é sustentável para o SNS. Portugal é o único país do mundo desenvolvido a poder instituir um plano de eliminação da doença.

Mas há outro país que fez isso, o Egipto, com um preço muito mais baixo, que vai permitir tratar cerca de 5 milhões de pessoas.
É um caso particular. A elevada incidência da doença [no Egipto] resultou de não terem metodologia adequada no controlo do sangue para as transfusões. Fizeram um acordo por, creio, 900 dólares [por 12 semanas de tratamento].

A Índia, recentemente, recusou reconhecer a patente do sofosbuvir.
São políticas diferentes, mas é preciso ter coragem.

A Índia não tem dinheiro para pagar estes valores...
E Portugal tem?  E a União Europeia tem? A solução é os Estados assumirem a sua responsabilidade e negociarem a introdução e o registo e a possibilidade de terem protecção de patentes se os preços forem sustentáveis pelos serviços de saúde .

A Gilead anunciou recentemente que ia baixar o preço dos seus medicamentos para a hepatite C. Porquê?
Porque estão na calha dezenas de medicamentos, a concorrência é brutal. Mas este acordo não é ad eternum, tem um limite temporal, se houver preços mais baixos o Estado não virá a ser penalizado.

Quantos doentes vai tratar no seu hospital?
Estão diagnosticados perto de 900 doentes com hepatite C. Seguramente conseguiremos tratá-los em dois anos. Uns já estão a ser tratados, e mais de 120 estão identificados para começar o tratamento.

Acha que aquilo que aconteceu no hospital de Lisboa podia ter acontecido no seu?
Não conheço aquele caso concreto. Agora, se me disser assim: um doente que está na fase final, com cirrose hepática, varizes esofágicas, não foi por não tomar um medicamento que morreu, porque podia ter, de igual forma, uma hemorragia digestiva. Mas não sei o que se passou. Há um processo de investigações sobre isso.

O que vai acontecer aos processos que o S. João tinha em conjunto com outros hospitais contra o laboratório norte-americano? Por que razão chegaram a esse ponto?
Temos que lutar com os meios que temos.  Os nossos casos [de doentes] implicam um tratamento de 24 semanas, não de 12 semanas, como tem sido dito. Portanto, eram cerca de 96 mil euros por doente. Essa situação alterou-se, e agora não há nenhuma razão para que hospital não revogue os processos.

Quando é que os doentes começam a receber o medicamento?
De imediato.

Se estivesse infectado com hepatite C como teria agido?
Conheço pessoas infectadas que tiveram posições absolutamente espantosas por acharem que deviam ser tratadas mas a custos que não pusessem em causa o acesso de outros doentes [aos medicamentos] e o acesso ao SNS.

Voltando ao início, o ministro da Saúde ficou muito mal visto?
Não faço comentários políticos. Já vi outros ministros passarem pela mesma situação, nomeadamente Correia de Campos, que foi vergonhosamente demitido.

Mas isso aconteceu depois do encerramento de várias maternidades.
E [Correia de Campos] tanto tinha razão que nada foi alterado depois dele sair. [Nessa altura], todos os dias havia anúncios de nascimentos nas ambulâncias. Ele deixou de ser ministro e nunca mais houve anúncios destes. Acho que isto é destrutivo, porque tem um efeito boomerang. Alguém mais conseguiu mexer numa maternidade? Não houve reforma do SNS e isto é insustentável. Ou há um consenso sobre quais são as reformas necessárias ou daqui a uns anos não temos SNS. Basta ver como evolui a despesa na saúde e o que se prevê que seja a despesa do Estado (em 2050 estaremos a gastar 15% do PIB em saúde). Mantendo-se o crescimento, para a despesa pública acompanhar essa evolução, temos que fazer opções.

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