Aberto inquérito à morte de mulher com hepatite C

Filho da doente que estava à espera de medicamento inovador foi à comissão de Saúde protestar. “Alguém vai ser responsabilizado pela morte da minha mãe”.

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O protesto na comissão de Saúde, onde Paulo Macedo está a ser ouvido Daniel Rocha

Era uma comissão parlamentar de saúde sobre o caos nas urgências hospitalares, mas acabou por ficar marcada pela morte de uma mulher que esperava há dez meses por um medicamento inovador para tratar a hepatite C. O filho da doente, David Gomes, foi protestar ao Parlamento, acabou por se reunir com o ministro da Saúde e ficou a saber que o Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, ao qual pertence o Hospital de Egas Moniz que acompanhava a doente que morreu, abriu um inquérito ao caso.

O caso desta mulher marcou o dia. Meia hora depois de ter arrancado a audição do ministro Paulo Macedo na comissão parlamentar de saúde, o filho da doente que morreu com hepatite C entrou como visitante na sala para assistir à sessão agendada potestativamente pelo PCP para discutir os problemas nas urgências hospitalares.

Acompanhado por um doente da Plataforma Hepatite C e pelo filho de outra doente, David Gomes queria ser recebido pelo ministro. Logo à entrada na sala, tanto David Gomes como os outros dois doentes abriram os casacos para exibir uma camisola que dizia “tratamento para todos”.

A doente em causa foi internada sete vezes em 2014. O último internamento foi em Dezembro e prolongou-se até 31 de Janeiro, data em que a doente morreu. O medicamento inovador que tem gerado polémica devido ao seu preço de 42 mil euros por doente é o Sofosbuvir, da farmacêutica norte-americana Gilead Sciences.

O fármaco foi aprovado há um ano na Europa, mas em Portugal a Autoridade Nacional do Medicamento (Infarmed) ainda está a negociar com um laboratório um preço que o Serviço Nacional de Saúde possa pagar.

As informações do Infarmed apontam para que o acordo esteja por dias. A solução até agora tem sido dar o fármaco apenas aos doentes em risco de vida, mas as associações de doentes têm denunciado que mesmo nesses casos o acesso está comprometido.

Maria Manuela Ferreira tinha 51 anos e hepatite C há duas décadas. O último ano foi praticamente passado no hospital, com vários internamentos prolongados devido à cirrose que resultou do agravamento da infecção pelo vírus que atinge o fígado. O último internamento aconteceu a 16 de Dezembro e prolongou-se até à passada sexta-feira, dia 30 de Janeiro. “A minha mãe não resistiu à espera”, garantiu ao PÚBLICO o filho da doente, David Gomes, que adiantou que a mãe aguardava desde Fevereiro o Sofosbuvir.

José Carlos Saldanha é um dos doentes presentes na comissão de saúde. Tem consigo um papel para entregar a Paulo Macedo com dados sobre a hepatite C e os problemas em Portugal e o que pretendem que se faça. “Eu não vou tentar entregar o papel. Tentar dá logo 50% de hipóteses de não conseguir. Eu vou entregar, se ele quiser que deite fora”, explicou ao PÚBLICO.

O doente diz que tem uma cirrose descompensada e que o pedido para receber o mesmo medicamento está no Infarmed desde Dezembro. “Tenho uma filha e não quero morrer”, explica, dizendo que enviou uma carta ao ministro onde se disponibilizou para pagar metade dos 42 mil euros, mas ficou sem resposta. Tem a doença há 18 anos e é acompanhado no Hospital Curry Cabral em Lisboa. “O que se está a fazer é um genocídio”, resume.

Pressões dão mais poder às farmacêuticas
Em resposta às perguntas dos partidos, Paulo Macedo disse que sabe que estão doentes relacionados com a hepatite C na sala e garantiu que o Governo tem “claramente o interesse de introduzir o medicamento desta companhia farmacêutica ou de outra que tenha o mesmo potencial em termos terapêuticos”, mas destacou os “preços monopolistas” que até agora eram propostos.

O ministro deu exemplo de outros fármacos que pela mesma eficácia teriam de ser pagos a valores elevados. “A penicilina teria de ser paga a peso de ouro, ou o ar que respiramos”, ironizou, numa declaração que mereceu protestos contidos por parte dos doentes, que repetiram “nós estamos a morrer”. Macedo insistiu em criticar a “política de preços totalmente opaca”, mas assegurou que o acordo deve estar para breve e que o medicamento é dado a quem está em risco de vida. “As pressões dão mais poder à indústria farmacêutica”, alertou.

Enquanto decorria a audição do ministro, pelas 11h30, David Gomes saiu da comissão onde acompanhava os trabalhos para falar aos jornalistas. Indignado com o desfecho do caso da mãe, confirmou que vai avançar com uma acção em tribunal. “Alguém vai ser responsabilizado pela morte da minha mãe”, assegurou.
 
O filho de Maria Manuela Ferreira lamenta que o Governo esteja a “cortar na saúde” e que casos como o da mãe, “uma mulher de 51 anos, contributiva para sociedade”, terminem com uma morte por falta de um medicamento.
 

"Não me deixe morrer também"
Eram 12h13 quando José Carlos Saldanha decidiu não esperar pelo fim da comissão e levantar-se para dizer a Paulo Macedo: “A mãe do David morreu, não me deixe morrer também. Não há direito, é preciso acabar com isto”. O doente mencionou também a carta que enviou à tutela e que ficou sem resposta e abandonou a sala, com comentários da bancada do PSD de que era “um circo”. Antes de sair, o doente pediu “perdão” várias vezes, mas justificou que não podia deixar de intervir.

O social-democrata Miguel Santos pediu mesmo a palavra para apelar a que os restantes visitantes relacionados com a hepatite C saíssem. “São pessoas que cá estão e que querem criar um incidente”, argumentou, acusando o doente e familiares de “tirarem selfies como se fosse um acto lúdico e filmam o que o país pode ver em directo. “Julgo que é bastante lógico que devia solicitar que as pessoas se retirassem e que os trabalhos decorressem com toda a normalidade”, disse Miguel Santos à presidente da comissão, Maria Antónia Almeida Santos.

Maria Antónia Almeida Santos reconheceu o "excesso de um cidadão", mas com a oposição a defender a manutenção dos assistentes na sala a opção foi por continuar os trabalhos.

Depois do incidente com o doente com hepatite C, a assessora de imprensa do ministro da Saúde decidiu sentar-se ao lado do filho da mulher de 51 anos que morreu. No final de uma breve conversa, David Gomes acedeu a acompanhá-la e abandonou a comissão. Ao PÚBLICO, o filho adiantou que “a senhora disse que era do Ministério, que era assessora” e que terá prometido que “ia tentar resolver o caso para ser ouvido”.

A sala da comissão de Saúde nunca esteve tão movimentada. Regra geral, as audições de Paulo Macedo são sempre mais concorridas, mas desta vez sentiu-se um aumento do número de deputados presentes depois da entrada da Plataforma Hepatite C. A partir do momento em que os três elementos mostraram as camisolas pedindo o medicamento inovador para todos, os assessores dos vários partidos começaram a movimentar-se, entrando e saindo com papéis e falando com os deputados que representam. Com a equipa ministerial passou-se exactamente o mesmo. Várias câmaras e jornalistas encheram também a sala depois dos incidentes. O barulho gerado obrigou a deputada do PS que preside à comissão, Maria Antónia Almeida Santos, a apelar por diversas vezes à calma e silêncio, pedindo também que os próprios jornalistas não fizessem entrevistas na sala.

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