A infância não é só feliz, também pode ser triste

A cantora Luísa Sobral compôs um disco para o público infantil mas não infantilizado. Para não fazer a viagem sozinha, convidou a ilustradora Catarina Sobral, e ambas tratam o tempo das crianças como real. O idílico só vem mais tarde, nas memórias.

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Terminada a infância, habitualmente não se volta a pensar nela durante muito tempo. Primeiro, porque a chegada à puberdade traz uma aproximação ao mundo adulto e implica cortar orgulhosamente as amarras que prendem ao universo das crianças. Nem os corpos deixam, nem as cabeças querem ser menorizadas com uma tal apreciação. Parecer mais novo pode ser a maior das ofensas, receber presentes de aniversário com personagens que fazem parte de um passado remoto — que pode ter terminado há dois meses — pode ferir como o pior dos insultos. E depois, com o tempo, quase sem se dar por isso, cai muitas vezes sobre a infância um manto de doçura e inocência que a pinta como um tempo idílico, fácil, em que os problemas passam a parecer ridiculamente simples.

Só que, na altura, não é bem assim. E, em parte, foi nisso que a cantora e compositora Luísa Sobral pensou ao compor um disco intitulado Lu-Pu-I-Pi-Sa-Pa (o seu nome transformado pela língua dos pês). Claro que lhe vieram também à memória as recordações felizes das viagens de carro em família em que pai, mãe e irmão se lhe juntavam a cantar discos como Cabeças no Ar (grupo formado por Rui Veloso, João Gil, Jorge Palma e Tim, com letras de Carlos Tê em torno de um grupo de aluno de uma escola secundária) de fio a pavio, para ajudar a fazer avançar os quilómetros e as distâncias de horas parecerem, por milagre, encurtar alguns minutos. Era assim quando se punham a caminho de umas férias em Marrocos, mas não era muito diferente sempre que calhava um destino ligeiramente menos longínquo e a família se fazia à estrada, a partir de Lisboa, até alcançar as praias algarvias. O empenho chegava ao ponto de, entre os quatro, dividirem vozes e assegurarem ritmos, enquanto partilhavam momentos daqueles que, passados alguns anos, ficam cuidadosamente arrumados na gaveta de memórias perfeitas. Mas agora, entre risos, com um pouco menos de inocência, Luísa percebe também o lado utilitário e funcional na gestão das dinâmicas familiares. “Era a maneira de não entrarmos em tédio e eu não matar o meu irmão no banco de trás”, ri-se.

Desconte-se generosamente o exagero da expressão anterior. Mas a verdade é que Lu-Pu-I-Pi-Sa-Pa não é um disco pensado para as crianças a fim de as convencer que vivem um tempo perfeito ou que evite abordar temas menos radiosos. Esse foi sempre um dos desejos de Luísa Sobral: investir num objecto que não sucumbisse ao facilitismo de: a) assentar numa sequência de temas compostos e tocados num computador, a que se junta uma voz, com recurso a construções harmónicas de esforço quase nulo; b) cantar sobre cores, animais, profissões e outros temas inócuos de uma infância pré-escolar. A dificuldade era essa. Ao elevar um pouco o alvo etário, as canções teriam de deixar para trás um mundo cor-de-rosa e até mesmo pedagógico que arranjasse subterfúgios para não abordar o súbito turbilhão emocional que toma conta da vida com o início do percurso escolar.

Por um lado, Luísa Sobral quis então fazer-se acompanhar por uma instrumentação que remete para o universo folk e jazz dos seus discos, abordando essas sonoridades em canções dixieland, baladas de pendor Joni Mitchell, temas para orquestra e voz como se Judy Garland estivesse em terras da Disney. “Instrumentos verdadeiros”, como lhes chama em encontro com a Revista 2 no atelier da ilustradora Catarina Sobral (sem grau de parentesco). Algumas escolhas habituais nos seus álbuns, como o toy piano (piano de brincar), ficaram de fora para não sublinharem em excesso o universo musical infantil. Esse mesmo cuidado seria extensível à escolha de Catarina Sobral, autora de livros como Achimpa, Greve e O Meu Avô — com o qual venceu este ano o Prémio Internacional de Ilustração da Feira do Livro Infantil de Bolonha. “Quando vi as ilustrações da Catarina, achei que ela tinha exactamente a linguagem que eu queria”, relata a cantora. “Porque aquilo que queria era fazer um disco de canções que não tratassem as crianças de forma ‘infantilóide’. A linguagem dela é ao mesmo tempo irreal, um mundo meio de fantasia, mas que não é todo cor-de-rosa. Na verdade, acho até que o meu primeiro disco [The Cherry on My Cake, 2011] é mais cor-de-rosa do que este. E adorei logo que ela mandou a capa porque, sendo um mundo paralelo, tem cores mais tristes.”

Lu-Pu-I-Pi-Sa-Pa começa logo aí, na capa, a distanciar-se dos universos de cores garridas — como se às crianças escapasse necessariamente tudo o que está para lá do óbvio — e a evitar a representação de figuras vagamente humanas cujos olhos parecem desesperadamente querer fugir das órbitas. “Não há propriamente aquilo a que se possa chamar ilustração para crianças”, defende Catarina , cuja paixão pela literatura infantil aconteceu com livros que classifica como “um bocadinho refractários” — Tom Sawyer ou As Aventuras de João-Medo. “Nas propostas do Ilustrarte ou dos seleccionados de Bolonha, algumas até podem parecer pouco adequadas, mas é uma questão de literacia visual. É preciso educar as crianças visualmente para a ideia de que há várias maneiras de ver o mundo e de o representar. E tanto pode ser adequada para crianças uma ilustração muito realista para mostrar um lado mais difícil e trágico, como uma outra muito abstracta. Para as crianças, é válido quase tudo — com alguns limites naquilo que se representa.”

A tristeza e as frustrações são, de facto, um dos materiais privilegiados desta partilha. Não porque reflictam o tom geral da infância de cada uma, mas porque em ambas existe a noção de que nem tudo são rosas nos primeiros anos de vida, sobretudo quando a escola deixa de ser um enorme recreio e passa a exigir juntar letras e adicionar números de forma competente, sobreviver ao julgamento de professores e colegas, construir amizades cujos humores podem alterar-se a um ritmo diário. “Tenho plena noção de que o meu dia-a-dia é mais feliz hoje do que quando era miúda”, confessa Luísa Sobral. “Apesar de ter sido óptimo. Mas há angústias que vivemos de uma maneira muito mais intensa quando somos crianças. E acho que ficava mais stressada por não ter estudado para um teste do que agora com os nervos antes de entrar para o palco. As coisas são vividas muito intensamente porque é também o início, estamos ainda a explorar os sentimentos.”

O disco arranca, assim, com Não me deixes à porta da escola, pequena história de uma menina que pede aos pais para entrar discretamente na escola, longe dos olhares dos outros e sem ser envergonhada por quaisquer manifestações carinhosas que possam comprometer a sua imagem de fibra. Mais à frente, passa por uma canção sobre as primeiras paixões e as inseguranças normais num tipo de relação (uma tímida tentativa de namoro) com a qual não sabem ainda lidar. E depois, em Todos gozam, Luísa Sobral canta sobre aquilo a que hoje se chama bullying, mas que na altura em que as duas eram crianças não tinha nome para lá da crueldade de que as crianças são, por vezes, capazes. Pense-se no caso de Luísa: “Gordinha, caixa d’óculos e de dentes da frente partidos” num acidente na banheira com o irmão, assim a própria se descreve nos tempos de escola primária. Era um alvo fácil para o escárnio alheio. E no entanto...

Embora insegura quanto ao seu peso, tinha consciência do jeito para a música e para o teatro e sentia, por isso, que tinha armas para não se deixar vergar pelas líderes. Pelo contrário, partilhava esse condão de apontar o dedo e escolher as vítimas. Todos gozam soa, por isso, a canção com remorsos. Por exemplo, do dia claro na sua memória em que ao descer as escadas da escola perguntou: “Com quem vamos gozar hoje?” O feitiço virou-se então contra a desprevenida feiticeira. “E foi o dia em que gozaram comigo”, recorda. “Gozávamos até a outra pessoa chorar, no fim das aulas, e depois vinham buscá-la. Claro que no dia a seguir éramos amigas outra vez.” Por isso, descrevendo como “sinistra” e “horrível” esta roleta russa que a cada dia ditava um novo alvo, reincidindo mais obviamente naquelas menos preparadas para erguer as suas defesas, Luísa encaixa essa maldade (pouco consciente dos estragos produzidos) como parte de uma aprendizagem emocional. “Parece-me que a infância é a altura de explorar os sentimentos todos”, diz. “E temos de experimentar ser maus. Só que depois há uns que ficam assim.”

Criada na Lousã, um meio bastante mais pequeno do que a Lisboa de Luísa, Catarina escaparia a este reino do miniterror dos intervalos durante o seu tempo de escola primária. Mas coincide com a cantora no diagnóstico de estes serem tempos em que “os medos são sempre mais assustadores”. “Vivia sobretudo a angústia de poder ter feito alguma coisa mal. Às vezes, era uma coisa tão simples e tão estúpida como ter partido um prato.” Tal angústia prendia-se com o julgamento e a possível punição sentenciada pelo gigantismo adulto. Era uma angústia sofrida em antecipação, imaginando já possíveis consequências. Depois, a noção da existência de acontecimentos mais sérios e que exigiam uma correspondente resposta emocional, pública e privada, chegaria com a morte de um avô. Catarina lembra-se com nitidez de pensar para si: “É o meu primeiro morto. Tenho de chorar.” Assim fez. “Não entendia ainda a dimensão da morte, mas tinha consciência de que era uma coisa triste e que devia chorar. E sofri imenso nesse dia.”

A morte faz também parte das temáticas tratadas em Lu-Pu-I-Pi-Sa-Pa. Em Onde foi o avô, interroga-se para onde vão aqueles que fazendo parte de uma rotina diária (ou de qualquer outra regularidade) de uma criança desaparecem subitamente, dando lugar a um vazio a que muitas vezes faltam justificações racionais por parte de adultos igualmente fragilizados. Tudo faz parte de uma abordagem em que a cantora tenta regressar a um tempo de infância, não necessariamente coincidindo com a sua. Não era ela a mais gozada na escola, tal como pôde viver longe de uma morte próxima até já depois dos 20 anos. Mas por todas estas temáticas estarem presentes na vida das crianças não quis deixar de escrever sobre elas, procurando um ponto de vista que a aproxime do público infantil. No entanto, conforme já pôde observar, canções como Onde foi o avô ou Mãe acabam a remexer de igual maneira na bagagem sentimental dos adultos que assistem aos concertos e se vêem transportados de novo para uma idade e para experiências higienicamente catalogadas e arquivadas.

A própria Luísa, em palco, diz-se incapaz de manter o estofo de absoluta confiança com que avançava para o recreio quando se trata de cantar temas como a declaração de amor à sua mãe. “Às vezes, ao cantarmos coisas menos elaboradas, muito simples, elas vêm muito mais rápido para o coração”, confessa. Daí que, em palco, o final de Mãe lhe desperte, por vezes, uma tremedeira na voz que a força a pedir a participação do público — para disfarçar a dificuldade em esconder a situação desprotegida em que repentinamente se encontra.

Menos próxima das experiências de ambas é a relação quotidiana com a tecnologia explorada em Computador. Na verdade, o tema surge mais como um pequeno manifesto em defesa do faz-de-conta do que uma fácil condenação do computador. Não há maniqueísmo. Mas há uma perplexidade de que Luísa e Catarina falam relativa à recorrência dos actuais diagnósticos de hiperactividade. “Antes, éramos miúdos com energia”, enquadra a cantora. “O problema é que hoje em dia as crianças não gastam em energia. Ficam nos apartamentos a jogar, com os computadores e os tablets, e os pais usam muitas vezes a televisão como babysitter. Mas claro que os computadores e a televisão fazem parte da vida das pessoas e não concordo que se tire às crianças esse acesso, porque depois o mundo na escola é diferente do mundo dos outros miúdos.” A sua resposta está apenas no doseamento, na procura de um equilíbrio, sem proibições.

O perigo que dizem identificar no dia-a-dia das crianças de hoje é o afastamento das brincadeiras em que tenham de pôr a imaginação a trabalhar e em que um clique no computador possa produzir em segundos, com fidelidade, tudo aquilo que se possa desejar. O perigo, dizem ainda, é que uma chávena vazia possa deixar de ser saboreada como se contivesse o mais delicioso chá ou que uma almofada possa ser uma fraca substituta para toda uma casa. E que os horários fabris de aulas, trabalhos de casa e actividades extracurriculares estejam a impedir as crianças de ter o seu tempo de liberdade e brincadeira. Mas também que a rotação constante de professores apenas contribua para uma normalização e padronização das crianças, sem lugar e atenção à diferença, como uma linha de montagem em que o objectivo é ser perfeito em tudo e ser passado ao docente do ano seguinte sem olhar para cada nome como uma criança particular.

A infância continua, afinal, a não ser um paraíso. E comporta sofrimentos de integração, exigência de comportamento e uma entrada de supetão no mundo das responsabilidades que pode afigurar-se mais assustadora do que um monstro saído das histórias. Aquilo que Luísa e Catarina tentam é colocar o seu olhar a pouco mais de um metro do chão e mostrarem-se solidárias com as dificuldades do caminho. Para que, mais tarde, a infância possa então ser recordada como um tempo idílico, perfeito, feliz.

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