Mirko Zardini: “Os arquivos de Siza permitem-nos pensar a arquitectura de uma forma diferente”

O director do Centro Canadiano de Arquitectura (CCA), em Montreal, instituição que vai acolher grande parte dos arquivos de Álvaro Siza, vê na obra do autor do Museu de Serralves uma forma muito sábia de fazer e de pensar a arquitectura. E acrescenta que a qualidade geral da arquitectura portuguesa subiu muito graças a Siza.

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Ricardo Castelo/NFactos

Mirko Zardini, professor, crítico e ensaísta italiano, é desde 2005 director e curador chefe do Centro Canadiano de Arquitectura (CCA), em Montreal, a instituição que vai acolher perto de meio milhar de peças do arquivo de Álvaro Siza. Esteve no último fim-de-semana no Porto, a acompanhar a inauguração da exposição sobre o SAAL (Serviço Ambulatório de Apoio Local) no Museu de Serralves.

Professor de arquitectura e de design em várias universidades da Europa e dos Estados Unidos, Zardini é um grande conhecedor, e confesso admirador, da arquitectura portuguesa, e da obra de Siza em particular, que acompanha desde o final dos anos 70.

Em entrevista ao PÚBLICO, explica a razão e a importância que o CCA atribui aos arquivos do arquitecto português, cuja primeira remessa deverá chegar a Montreal até ao final do ano.

Que razão o trouxe a ver a exposição sobre o SAAL?
Porque é muito importante, hoje em dia, reflectir sobre a relação da arquitectura com a política e a sociedade. O SAAL é um exemplo histórico, que, sabemos, foi muito curto no tempo, apenas cerca de dois anos, e que se confrontou também com muitos problemas. No discurso crítico, o SAAL foi muitas vezes idealizado de um determinado modo. Hoje, quando olhámos para ele, vemos hipóteses e estratégias muito diferentes. Mas é muito importante reflectirmos, mais uma vez, sobre as diferentes possibilidades de a arquitectura e o urbanismo trabalharem para a transformação da sociedade contemporânea. E o SAAL, mesmo se alguns projectos são mais interessantes do que outros, foi capaz de produzir essa transformação.

Quando tomou contacto com a experiência SAAL?
Eu, como todos os italianos da minha geração, conheço o SAAL desde o tempo das revistas em que trabalhei, como a Casabella e a Lotus, em que esse processo nos chegou através dos artigos do Nuno Portas, das obras do Siza e coisas do género.

Qual é o interesse do CCA em apresentar a exposição de Serralves em Montreal?
Há duas razões para fazer a exposição no CCA: uma é a exposição propriamente dita, o tema SAAL; a outra é a ideia que temos de colaboração com outras instituições. Esta é uma das principais preocupações do centro. Quando lá cheguei em 2005, como director, entre os meus projectos para a transformação do CCA estava abri-la à colaboração com outras instituições. Isto é fácil de dizer, mas a colaboração só é eficaz se significar uma correspondência entre duas partes. Não chega dizer: “Temos de colaborar”. É preciso encontrar, entre as outras instituições, aquelas que são interessantes para nós, não só pelo seu trabalho, mas também porque provêm de diferentes contextos culturais. É o caso de Serralves. Não é o contexto tradicional francófono ou anglófono, que, historicamente, tem marcado as relações do CCA. É algo totalmente diferente. E quando Serralves decidiu desenvolver esta iniciativa sobre o SAAL, vimos aí boas razões para trabalharmos em conjunto sobre esse processo.

O que acha da exposição em Serralves?
É uma exposição muito interessante. A dificuldade – e já falei muito com [o comissário] Delfim Sardo sobre isso – é que, para apresentá-la fora de Portugal, é preciso dotá-la com mais informação e algumas explicações sobre o contexto histórico e cultural. Se para vocês, aqui, falar do SAAL é claro, para as pessoas fora do vosso país isso não é tão imediato. Vamos procurar ter mais materiais que permitam dar uma ideia da origem de cada projecto, além da condição de Portugal neste momento histórico.

Soubemos, no início do Verão, que a maior parte dos arquivos de Álvaro Siza vai ser doada ao CCA. Por que se interessaram por eles?
Siza é um dos arquitectos que, no período do pós-guerra, desenvolveu uma hipótese crítica sobre a arquitectura e sobre a cidade, e também sobre a ideia de incorporar nesse processo uma discussão sobre o contexto cultural e social. Foi um trabalho que ele desenvolveu através não de uma arquitectura tão espectacular como a que nós tivemos nos anos 1980-90, mas sempre de uma forma muito sofisticada. O seu olhar sobre o real, a sociedade e o mundo com toda a sua complexidade, incluindo nesse processo a arquitectura como uma forma de compreender e de mudar a realidade, é algo muito importante. E é muito importante termos essa visão do mundo próxima de visões muito diferentes das dele, como as que estão expressas nos arquivos que já possuímos em Montreal: de Cedric Price, de Peter Eisenman, de Matta-Clark, de James Stirling, de Aldo Rossi, de Pierre Jeanneret, etc…

É muito importante, não apenas pelos arquivos mas pelo contexto em que eles vão ser colocados e tratados. É também, a nível de política cultural, uma visão muito sábia, que quero acrescentar aos nossos arquivos de arquitectura contemporânea. A arquitectura de Siza, para além do seu valor próprio, tem um valor simbólico pelo que significa de transformação política e social. É muito raro encontrar uma arquitectura que é capaz de incorporar essa dimensão. Por outro lado, ter os arquivos de Siza ao lado de outros acervos no CCA abre também a possibilidade de criar um debate, e de dar uma direcção diferente à arquitectura contemporânea. E é muito importante jogar nestes dois níveis.

Quando contactou, pela primeira vez, com a arquitectura de Siza?
Conheci-o a partir do trabalho que fiz nas revistas Casabella e Lotus, que já referi atrás. E vim a Portugal, no final dos anos 70, para visitar as suas obras. Nessa altura conheci-o a ele, e ao Souto de Moura. Fiquei desde logo fascinado com o trabalho do Siza e, a partir daí, mantive uma relação permanente com ele.

Regressando aos arquivos, porque escolheram – a decisão terá sido do próprio arquitecto em primeiro lugar – associar-se a Serralves e à Gulbenkian na partilha do acervo?
Falei muito com o Siza sobre isso, até quando ele fez no CCA uma pequena exposição, em 2012 [Alturas de Machu Picchu, com desenhos e também esquissos do projecto da Quinta da Malagueira em Évora]. Sei que ele tinha inicialmente a ideia de fazer uma Casa da Arquitectura em Matosinhos, mas que depois não avançou. Todo o trabalho dele é muito interessante, mas é claro que ele tem muitos projectos importantes em Portugal, e disse que queria mantê-los cá, o que é compreensível. Nessa altura, disse-lhe: “Se precisares de nós para encontrar soluções alternativas, estamos aqui para as discutir contigo”.

O nosso objectivo não é ter os arquivos todos no CCA. A ideia de colaboração, e de utilizar os arquivos como um meio para essa colaboração, é muito importante para nós. Falámos então sobre várias instituições, e ele acabou por escolher Serralves e a Gulbenkian – Siza já tornou públicas as razões das suas escolhas, e acho que são compreensíveis. Para nós, é muito bom termos materiais em Montreal e podermos trabalhar com Serralves e com a Gulbenkian.

O CCA certamente já reuniu com as duas fundações. Como vão ser distribuídos os arquivos?
Em conjunto com o Siza, definimos alguns critérios que tivessem em conta seja o valor dos projectos portugueses seja os internacionais. E já falámos com Serralves e com a Gulbenkian sobre a parceria. É muito importante que, independentemente de os arquivos estarem divididos por diferentes lugares, podermos dar uma visão de conjunto deles. É por isso que vamos, primeiro, tratar da catalogação. Mas estamos ainda a discutir isso tudo.

Os arquivos começaram já a ser enviados para o Canadá?
Ainda não. Estamos a ajudar a organizar os arquivos directamente no atelier do Siza. Um primeiro envio importante está agendado até ao final do ano.

Faz alguma ideia da dimensão dos arquivos e do número de peças que os constituem?
O arquivo é constituído por quase 500 projectos: desenhos, maquetas, fotografias, esquissos e cadernos de esquissos. Comparando com alguns arquivos que temos no CCA, é bastante maior: por exemplo, o de James Stirling tem cerca de 200 projectos, o de Abalos & Herreros tem 350...

Como acompanhou, à distância do Canadá, a polémica que a certa altura se levantou em Portugal a propósito do destino dos arquivos de Siza?
Achei a discussão normal e muito razoável. Quando estão em causa decisões como aquela que Siza agora tomou, é normal surgir uma discussão como esta.

Em muitos países da Europa foram criados museus ou arquivos de arquitectura. Mas há ainda países que não fizeram isso, como Portugal e a Espanha, por exemplo. Na Ásia, há vários museus de arquitectura: em Hong-Kong, na Coreia... E também em África. A verdade é que, um pouco por todo o mundo, é visível o interesse em criar instituições do género. Mas há modelos muito diferentes.

Nos Estados Unidos, a arquitectura surge em departamentos de museus, como em Chicago, em São Francisco, no MoMA de Nova Iorque... Na Europa, há instituições nacionais que mantêm o modelo vindo do século XIX, e outras que foram criadas no século XX, como o NAI [Instituto de Arquitectura da Holanda], em Roterdão, ou o Museu de Arquitectura de Frankfurt, ou o Centro de Arquitectura de Viena, ou a Cité de l’Architecture de Paris. São modelos muito diferentes.

Já o CCA é um caso único – e talvez esta seja uma ideia muito moderna –, pois se trata de um centro de arquitectura que não é nacional, mas que, desde o início, foi fundado sobre a ideia de uma visão internacional. Tem arquivos canadianos, americanos, europeus… A missão do CCA é ser um centro internacional. Mas esta ideia tem de ser desenvolvida de uma maneira mais rica.

Hoje em dia, muitas instituições pensam que o mais importante é mostrar que têm colecções valiosas. Mas o que é cada vez mais necessário é reflectir sobre o que fazer com isso. Ter uma colecção para quê? É bom ter colecções muito ricas, mas isso, por si só, não é suficiente. Daí que a ideia que mais me interessa desenvolver é a de colaboração, de rede. Por outro lado, vivemos hoje uma crise muito pronunciada dos modelos tradicionais das instituições: museus, arquivos nacionais, arquivos de arquitectura, universidades…

Estas instituições têm de reflectir sobre modelos muito diferentes de actuação. Penso que a discussão que hoje estará a haver em Portugal é muito importante. Mas gostaria também que ela se desenvolvesse de uma forma mais aberta, não apenas sobre a necessidade de criar instituições de arquitectura, mas também sobre a crítica da ideia tradicional de instituição.

Em Portugal, não temos nenhum museu nacional, mas há projectos, e há já várias instituições com arquivos de arquitectura. Qual lhe parece que seria a melhor solução para o caso português?
No momento, acho que o melhor modelo será o que Siza, de uma forma muito realista, tentou pôr em movimento no sentido de reforçar a atenção à arquitectura na Gulbenkian e de introduzir um trabalho sobre a arquitectura em Serralves. É uma decisão muito realista, tendo em vista a situação actual. O problema não é o de saber se deve ou não haver uma instituição para a arquitectura em Portugal. A questão é saber qual é o projecto cultural e político para uma nova instituição, ou para a transformação das instituições já existentes. E há uma questão muito simples, que decorre do mundo digital em que agora vivemos.

Os museus trabalharam até hoje sobre a ideia da proximidade física, de que estavam muito ligados à sua comunidade. Hoje, o que é que significa essa comunidade física? É verdade que ela existe, mas simultaneamente existe uma comunidade que, possivelmente, jamais virá visitar a instituição física, mas que tem a possibilidade de a visitar virtualmente, de recolher dados e imagens, de a compreender, de comprar as publicações…

Acho que não reflectimos ainda suficientemente sobre estas questões. E se o fizermos, a ideia de periferia desaparece. Deixamos de ter a pequena comunidade, porque o mundo é agora muito grande. Um pequeno nicho, a nível mundial, é já uma grande população. É preciso discutir isto. Penso que a situação em Portugal talvez possa permitir não apenas reproduzir modelos que já existem, mas compreender se há a possibilidade de lançar modelos diferentes.

Fora dos círculos da arquitectura, conhecíamos mal o CCA antes do caso dos arquivos de Siza. Como é que o centro consegue ser ao mesmo tempo um museu, uma galeria de exposições e um centro de estudos e de investigação?
Neste processo de repensar o CCA, a coisa mais importante é analisar a situação em que hoje vivemos. É muito claro que há uma mudança de paradigma, de valores, de formas de pensar. Cada instituição tem agora a responsabilidade, a nível intelectual mas também moral, de respeitar o tempo em que vivemos. É importante que o CCA assuma que há problemas, que há muitas coisas que desapareceram. Temos, pois, a necessidade de procurar, de compreender o mundo de hoje, e de encontrar uma nova função para a arquitectura e para o urbanismo, um novo sentido de responsabilidade no mundo. E isso passa pela investigação. Mas o que é que vamos investigar? Tudo o que fazemos é no sentido de encontrar soluções.

Por que é que estamos interessados nos arquivos de Siza? Porque Siza permite-nos pensar a arquitectura de uma forma diferente.
Por que é que temos investigadores no CCA? Porque não chega, hoje, ter uma colecção e fazer exposições. O que há a fazer tem de estar baseado na investigação. Nós somos um museu de pesquisa, um centro de investigação. A colecção existe para proporcionar o desenvolvimento da investigação. As exposições fazem-se porque são uma forma de fazer pesquisa. Somos pesquisadores de coisas novas. Não creio que vamos encontrar soluções para tudo, porque isso não é possível. Mas vamos colocar questões, vamos formular as questões de uma forma diferente.

É essa a razão por que fizemos uma exposição, Désolé, plus d’essence [2008], sobre a crise da energia em 1973. Na altura, essa era uma questão muito importante, e hoje vivemos o mesmo problema. Mas não se trata de um problema tecnológico, é um problema político. Demonstrar essa ligação é importante, porque vai explicar essa conexão da política com a arquitectura e o urbanismo. Nós fizemos outra exposição, Action: Comment s’approprier la ville [2009], para demonstrar que há outra forma de compreender as cidades.

Nós temos muitos utensílios – a colecção, as exposições – que estão à nossa disposição, mas eles não são um fim, servem como meios para tentar dizer coisas diferentes, novas. Tentamos, por isso, acolher as pessoas mais diversas, que vêm de todo o mundo, para investigar, discutir. É um momento muito importante, hoje em dia. Temos a possibilidade e a responsabilidade de fazer essa reflexão.

Como vê a arquitectura portuguesa actual, para além de Siza?
Siza representa um momento muito importante, tanto a nível simbólico como a nível pessoal. Ele já fazia parte de um contexto mundial da arquitectura, com Fernando Távora e toda a Escola do Porto. A sua obra deixou marcas, provocou consequências, e não só em Portugal – é importante a influência que teve em Itália e também noutros países da Europa: a Alemanha, a Holanda, a França...

É claro que não é possível manter sempre a mesma intensidade. Há ciclos. É natural que ele tenha terminado um ciclo, que se vai desenvolver de um certo modo, mas outro ciclo vá começar. Isto não é só a responsabilidade do arquitecto, é o contexto político, social, económico. Mas também foi o contexto que lhe permitiu fazer coisas. Talvez se não tivesse acontecido a Revolução do 25 de Abril…

A qualidade geral da arquitectura portuguesa subiu muito graças a Siza. Há muitos bons arquitectos, mas não quero ser eu a enunciar uma lista. E há jovens arquitectos muito interessantes, que vão trabalhar e encontrar caminhos diferentes dos de Siza. Mas o que acho mais interessante, hoje, é ver uma arquitectura que é capaz de assumir a responsabilidade de se situar no mundo actual, de reagir à complexidade do nosso tempo e tentar dar respostas arquitectónicas a estes problemas. É esta a razão da fascinação pelo SAAL, que tem projectos muito diferentes, mas que foram capazes de responder aos problemas do momento. Espero que, nos anos mais próximos, seja possível ver isso de novo em Portugal, e na Europa. Talvez isso seja mais fácil nos países da periferia da Europa...

Num texto que escreveu para a exposição Porto Poetic (apresentada, no início deste ano, na Galeria Municipal Almeida Garrett), defendeu que talvez partisse dos países da periferia um novo olhar sobre a Europa e o mundo da arquitectura. Continua a acreditar nisso?
Sim. Acredito que talvez seja da periferia – e hoje a periferia da Europa é apenas uma periferia económica – que surja a possibilidade de pensar de forma diferente, e de encontrar soluções alternativas. Gostaria de poder ver isso já nos próximos anos, ver Portugal e a Espanha dar respostas capazes de dar direcções diferentes ao mundo, ao futuro.

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