Após o tempo das vacas gordas, o Brasil enfrenta escolhas difíceis

O Brasil tem agora uma dura tarefa para regressar ao crescimento sem comprometer os programas sociais.

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Palácio do Planalto em Brasil, sede do Governo Federal e da Presidência do Brasil Evaristo SA/AFP

O futuro próximo do Brasil vai ser diferente do passado recente. Com governos mais à esquerda ou mais à direita, com maior ou menor dose de populismo, o governo que se segue sabe que o tempo da euforia, a era de crescimento acelerado e ininterrupto, os tempos de consumo desenfreado e de forte redução da pobreza vão ter de ser temperados pelo ciclo económico que se abriu no primeiro mandato de Dilma Rousseff e que promete acentuar-se nos anos que se avizinham.

O final do longo ciclo de expansão económica e de redução das brutais desigualdades sociais vai, no entanto, exigir muito mais do que novas formas de encarar o crescimento da economia ou o desequilíbrio das contas do Estado; o abrandamento do ritmo do progresso vai impor ao Brasil novos desafios para a reforma do sistema político e do labirinto burocrático que tornou o país um exemplo mundial das entropias legislativas e da irracionalidade fiscal.

Apanhado na “armadilha do rendimento médio”, o Brasil vai ter de mudar para deixar o pelotão das economias emergentes, ainda muito dependentes da exportação de matérias-primas e produtos agrícolas. Vai ter de reordenar o seu sistema político que alimenta o espectro da ingovernabilidade e facilita a corrupção. Vai ter de superar as feridas abertas pela campanha, que fizeram regressar os fantasmas de uma sociedade barricada na oposição de classes sociais e de ideologias políticas que faz lembrar o pesadelo do princípio dos anos de 1960 que bloquearam a democracia (oligárquica, mas ainda assim democracia) e levaram ao poder os militares.

Num país onde a melhor ciência, a melhor criatividade e um tecido empresarial de ponta convivem com a pobreza, a exclusão e vestígios das economias do Terceiro Mundo, o que vai acontecer no futuro próximo é uma incógnita. Mas a estabilização e normalidade democráticas dos cinco últimos governos do Brasil mostram que a vaga de fundo abre muito mais as portas ao optimismo do que ao fracasso. O Brasil deixou de ser o país do futuro que Stefan Zweig augurou a meio do século passado: já é um país do presente. Que, como todos os países do presente, tem à sua frente uma série de desafios que terá de vencer. Alguns exemplos:

Crescimento económico
A explosão das economias emergentes registada nos últimos 20 anos foi crucial para a vaga de crescimento do Brasil. Entre 1995 e 2002, quando Lula conquistou o poder, o país cresceu 2,3% ao ano. Desde então até Dilma lhe suceder, o Brasil cresceu em média 4% ao ano. Foi um dos países que melhor superou os dramas da crise financeira mundial, chegando a registar um crescimento do produto de 7,5% em 2010. Mas, desde então, a economia dá sinais de exaustão. O Governo federal tentou contornar a tendência, adoptando políticas de estímulo ao investimento e ao consumo e, em 2013, esse esforço conseguiu ainda provocar uma subida do PIB em 2,3%. Mas, como a injecção de recursos patrocinada pelo Estado tem limites, este ano registou-se um abrandamento na política de estímulos e a economia deverá crescer uns magros 0,3%. Dilma Rousseff e o PT culpam a conjuntura internacional pela recessão que chegou ao país no segundo semestre. Mas a generalidade dos economistas olham para a situação com um olhar bem mais preocupante. A subida dos salários minou a competitividade da economia, principalmente a do maior parque industrial da América Latina, que registou uma quebra do seu peso na riqueza nacional de 25% para 12,5%.

O investimento está em níveis muito abaixo dos desejáveis para um país que se quer aproximar da linha da frente. A valorização do real desequilibrou o saldo da balança externa e está a levar as exportações do Brasil a uma cada vez maior dependência dos minerais e dos produtos agrícolas, nos quais o país se tornou uma potência de nível mundial. Felizmente a inversão do ciclo ainda não se reflectiu no desemprego, que permanece abaixo dos 6%. Mas todos os outros indicadores apontam para um país que perdeu velocidade e não sabe bem como acelerar de novo. Certo, certo é que, esgotadas as políticas de estímulo, o país vai ter de gastar mais em infra-estruturas, modernizar o seu complexo sistema fiscal, travar o surto de crescimento dos salários acima da inflação (os salários reais cresceram em média 3,4% nos últimos cinco anos) e congelar a carga fiscal que está muito mais perto dos valores europeus do que dos concorrentes próximos, como o Chile ou o México. Para lá destas exigências, o Governo vai ter de manter, pelo menos, os custos dos programas sociais que, como se percebeu nesta eleição, os brasileiros apoiam incondicionalmente.

Inflação
Em termos nominais, a inflação que se regista no Brasil está longe de poder ser vista como uma dor de cabeça: ronda os 6,5% ao ano e situa-se no intervalo prescrito pelo Governo. O problema é que, por detrás dos números há uma verdade escamoteada e uma preocupação muito especial dos brasileiros em relação ao controlo dos preços. Como os alemães, os brasileiros sentiram na pele os horrores da inflação, que chegou a bater o pico de 82% ao mês, em Março de 1990. Para eles, uma subida nos preços maior do que o esperado suscita os piores medos. Dilma Rousseff e o seu governo sabiam que a inflação era uma questão determinante para o seu sucesso nas eleições e, no ano passado, reforçaram o controlo dos preços administrados. A energia ou os combustíveis, por exemplo, não subiram de preço segundo as regras do mercado porque a Petrobras, a petrolífera estatal, absorveu em perdas as diferenças entre o preço mundial do crude e o da venda de gasolina. Na electricidade, os preços foram controlados à custa da renegociação de concessões com as empresas produtoras (entre as quais a EDP). Este ano, com o recuo dos estímulos à economia e o controlo dos empréstimos ao consumo, a inflação abrandou. Mas não deixará de ser uma das questões fundamentais para o próximo mandado.

Sistema político
Há anos que altos responsáveis políticos do Brasil concordam sobre os males que a pulverização do sistema partidário coloca ao país. Nesta eleição, os brasileiros elegeram representantes de 28 partidos para a Câmara de Deputados, o que já de si torna a geração de maiorias um milagre permanente – o PT, com 70 deputados, conseguiu eleger apenas 13,65% dos eleitos e o PSDB, com a terceira maior representação parlamentar, elegeu apenas 54 dos 513 deputados. Mas, mais grave, é que a eleição se faz através de votos nominais – em candidatos associados a um número. O que torna os deputados donos dos seus mandatos e os partidos simples sacos de acolhimento de protagonismos pessoais. Perante esta ténue linha de fidelidade partidária, os deputados agem a seu bel prazer e em boa parte dos casos em função de interesses pessoais. A possibilidade de aprovarem emendas parlamentares com obras, por exemplo, para os seus colégios eleitorais, obrigam-nos a negociações permanentes para conseguirem apoios, o que torna o parlamento numa feira de trocas de apoios, favores e corrupção. O escândalo do mensalão e da Petrobras (ver abaixo) tiveram como origem planos de compra de votos em favor do Governo. Enquanto não se alterar este sistema, é voz corrente no Brasil, será difícil ter um sistema político coerente, amigo da governabilidade e imune ao fisiologismo que torna a classe política brasileira uma das mais vulneráveis à corrupção em todo o mundo.

Corrupção
Uma das maiores vulnerabilidades políticas do PT nestas eleições resultou da acumulação de casos de corrupção. Com o mensalão, que abalou a aura de Lula da Silva e levou para a prisão altas figuras do seu partido, com destaque para José Genoíno e José Dirceu, quase a diluir-se na memória, um novo escândalo surgiu no seio de uma empresa pública, a Petrobras, que é para os brasileiros o símbolo da soberania nacional sobre os seus enormes recursos naturais. O escândalo começa quando se sabe que, em 2006, quando Dilma presidia ao Conselho de Administração, a empresa pagou 360 milhões de dólares por 50% da uma refinaria de Pasadena, nos Estados Unidos. Um valor oito vezes superior aos 43,5 milhões que a belga Astra Oil pagara por 100% um ano antes. Dilma disse ter apoiado a compra com base num parecer “técnica e juridicamente falhado”. Polícia Federal, Tribunal de Contas da União e Congresso estão a investigar. Logo depois, uma investigação a Paulo Roberto Costa, director das áreas de abastecimento e refinação da Petrobras entre 2004 e 2012, abre um processo que ameaça afectar a credibilidade não apenas do Governo e do PT, mas também do Congresso e dos governos estaduais. O administrador submeteu-se a um acordo de delação premiada (que lhe reduz a pena em troca de colaboração nas investigações) e denunciou um ministro, o da Energia, três governadores, entre os quais o do Maranhão, do Rio de Janeiro e Eduardo Campos, seis senadores, incluindo Renan Calheiros, presidente do Senado, e 26 deputados federais. Ainda é cedo para se saber até onde as revelações de Paulo Roberto Costa chegam. Mas adivinha-se uma tempestade que vai mudar a relação do Governo com as empresas públicas, que pode acelerar reformas políticas e criar uma crise de confiança com impactos mais dramáticos do que os do "mensalão".

Reformas do Estado
O custo-Brasil é uma das facturas mais pesadas que os empresários e os cidadãos têm de pagar no seu quotidiano. Um estudo da federação das indústrias do Rio de Janeiro diz que a desalfandegação de um contentor num aeroporto brasileiro demora 175 horas nos cinco principais aeroportos. Em Xangai faz-se em quatro e em Londres em cinco horas. De acordo com o Banco Mundial, a importação de um contentor custava, no ano passado, em média, 2275 dólares. Em Portugal o custo ficava pelos 899 dólares. No Brasil são necessários 108 dias para abrir um negócio, 400 para uma permissão de construção, 731 para resolver uma disputa legal. O Fórum Económico Mundial considera que os obstáculos burocráticos e os labirintos fiscais, com cada estado a usar pautas distintas, são um problema que mina o futuro do país. Aécio Neves foi o candidato que mais promessas de reforma fez a este propósito.

Educação e saúde
Os protestos de Junho do ano passado esvaneceram-se e as exigências dos cidadãos em favor de melhorias no sistema de saúde e na educação saíram da agenda política. Mas permanecem como pano de fundo para o próximo ciclo da governação. Aécio Neves propunha, por exemplo, aumentar os gastos com a saúde para 10% do PIB e quer o candidato do PSDB quer Dilma Rousseff mencionaram a aposta na educação como uma prioridade. Percebe-se: a educação fundamental é pobre e o sistema básico de saúde não chega sequer a todos os cidadãos. Numa escala de zero a 10, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), pontuou as escolas públicas em 3,7. Só 55% das crianças conseguem lugar na rede pré-escolar. A maioria dos estudantes do secundário tem quatro horas de aulas por dia, contra sete em média da OCDE. A população com ensino superior ronda os 10%, contra 25% no Chile e 30% em média na OCDE, o que causa uma enorme carência em médicos, engenheiros, matemáticos e físicos. Para melhorar o cenário, o próximo Governo vai poder contar com uma parte dos royalties do pré-sal (a exploração petrolífera). Mas a carência de equipamentos e a necessidade de valorizar os professores vão exigir enormes recursos e imensa vontade política.  

Na saúde, será necessário investir na construção de hospitais, de alargar a rede de cuidados básicos e de conseguir aumentar o número de médicos – no Brasil há 1,8 médicos por mil habitantes, contra 3,1 na OCDE. O recurso a profissionais estrangeiros é uma possibilidade. Que suscita polémica, até pelos magros salários que, por exemplo, os profissionais contratados em Cuba auferem. Mas este será um sector de enorme sensibilidade política no próximo mandato. Para 45% dos brasileiros, é mesmo o maior problema do país, de acordo com um estudo recente do Datafolha.

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