Tunísia: a “aldeia do Asterix da democracia” vai a votos

Ainda tudo pode acontecer no país onde as revoltas árabes começaram. O antigo regime ameaça regressar, mas o futuro ainda pode ser muito diferente da vida no resto da região.

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1300 listas com 13 mil candidatos concorrem aos 217 lugares do parlamento tunisino
Comissio do Ennhada em Túnes
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Comissio do Ennhada em Tunes FADEL SENNA/AFP
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Na Tunísia há 5,3 milhões de eleitores, mas a abstenção pode ser alta – a população está descontente com os políticos

São as eleições mais importantes de sempre na Tunísia e são muito mais do que isso. “A Primavera acabou mas há pelo menos um sobrevivente”, escreve a libanesa Roula Khalaf, editora do Financial Times. As legislativas deste domingo e as presidenciais de Novembro são quase tudo o que resta do sonho de liberdade que se iniciou precisamente na Tunísia, há quase quatro anos, varreu uma região do mundo e inspirou outras, antes de ser enterrado por tiranos, bombas, sectarismos, novos grupos jihadistas ou golpes de estado militares.

São só 5,3 milhões os eleitores tunisinos (num país de dez milhões) que podem votar, mas é tudo isto que têm nas mãos. Isto e o futuro do seu próprio país, cuja revolução ameaçou resvalar, quando um grupo salafista matou dois políticos de esquerda, em 2013, mas se salvou graças à inteligência e à moderação dos seus políticos.

Os islamistas do Ennahda, grandes vencedores das eleições de 2011, que governavam em coligação com dois partidos de esquerda, aceitaram negociar com todos e deixaram o poder para um governo de tecnocratas. A Assembleia Constituinte pôde assim continuar o seu trabalho e o país aprovou uma nova Constituição, moderna e inclusiva.

“No essencial, a transição está feita. A etapa da Constituição e das liberdades foi concluída, mesmo a questão da identidade, que motivou um debate tão forte, com a questão de uma Tunísia com mais islamista e ou de uma identidade democrática de um país árabe mas não religioso, ficou resolvida no processo constitucional”, diz Álvaro de Vasconcelos, um dos europeus que acompanhou mais de perto estes anos tunisinos.

Agora, falta tudo o resto. “É preciso enfrentar outro tipo de problemas, económicos e sociais, o desemprego e o fosso entre o interior e as zonas costeiras, que se agravou ainda mais nestes anos pós-revolução”, resume o académico, que dirige programas sobre transição democrática no Arab Reform Initiative (um consórcio de think tanks e institutos de investigação) e dirigiu o Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia entre 2007 e 2012.

É disso que falam a maioria dos tunisinos, muitos já descontentes com a democracia que teima em não responder em tempo útil às suas expectativas. A revolução fez-se em nome da liberdade e por uma vida mais digna – isso significa direitos políticos mas também comida para pôr na mesa.

No fim de 2013, o desemprego nacional estava nos 15% (30% entre os jovens), mas chegava aos 23% no Sudoeste (o nordeste tinha a menor taxa, com 9,7%). Historicamente, as grandes cidades foram erguidas na província de Tunes, a nordeste, e no Sahel (onde os últimos dados do desemprego são de 11%), numa zona que cobre a linha da costa do Norte ao Leste. O regime de Zine el-Abidine Ben Ali reforçou estas divisões, concentrando aqui 95% do investimento externo directo e promovendo o turismo de massas.

Foi nas minas de fosfato de Gafsa que os protestos contra a ditadura começaram a ganhar força e foi um jovem vendedor ambulante, Mohamed Bouazizi, de uma cidade agrícola perdida no centro do país (Sidi Bouzid), que se imolou pelo fogo e provocou a onda de manifestações que fez cair Ben Ali e ameaçou varrer ditadores do Magrebe ao Golfo Pérsico. A Constituição prevê a descentralização e há planos de desenvolvimento para cada uma das 24 províncias do país, mas ainda estão todos na gaveta.

Isto explica, pelo menos me parte, o descontentamento da população face aos políticos, os receios de uma grande abstenção, e os números de uma sondagem do Pew Research Center realizada na Primavera: 59% dos tunisinos apoiam um líder forte, quando dois anos antes eram 37%; e só 38% prefere um governo democrático para resolver os problemas do país – eram 61% os que pensavam assim em 2012.

Insegurança e polarização
Não são só os problemas económicos a contribuir para esta evolução. Há a insegurança, que aumentou, muito por causa do caos na Líbia fronteiriça, com grupos que tanto podem actuar de um lado ou do outro da fronteira. E há também uma polarização muito grande entre os tunisinos laicos que se habituaram a um país onde a religião tinha de ser vivida às escondidas e os religiosos que, depois de décadas de perseguição, saíram à luz do dia.

“Os argumentos políticos não colhem. É um medo irracional, aquele que leva a pensar que um bom islamista é um islamista morto”, diz Álvaro de Vasconcelos. Há muitos, muitos tunisinos que pensam que islamismo e moderação são palavras que não cabem na mesma frase. É o Ennahda que terá de os desmentir.

Problemas económicos e esta polarização – mais o desejo do Ennahda de promover o consenso –, contribuíram para que muitas figuras do antigo regime regressassem ao país e para que partido Nidaa Tounès ameace agora os islamistas. Liderado por Béji Caid Essebsi, ex-ministro de Habib Bourguiba (pai da independência, afastado por Ben Ali) e ex-primeiro ministro do ditador derrubado em 2011, o partido pode conseguir perto de 30% dos votos, a mesma fatia que as sondagens antecipam ao Ennhada.

Tal como Essebsi, candidato à presidência, há uma série de ex-ministros de Ben Ali com a mesma ambição. Muitos tiveram de fugir da Tunísia, outros chegaram a ser presos. Todos regressaram à política quando a chamada lei de “imunização da revolução”, que excluiria os responsáveis do regime do processo eleitoral, foi chumbada pela Assembleia Constituinte dominada pelo Ennahda.

“O Ennahda tinha a preocupação de não criar fracturas graves que não permitissem a consolidação do processo constituinte. Quando houve o boicote à Constituinte, [o primeiro-ministro, Rashid] Gannouchi e o líder do Nida Tounès debateram muito e o acordo a que chegaram obrigou a concessões”, explica Álvaro de Vasconcelos.

Um regime por nascer
Chegados a este ponto, as eleições de domingo e as presidenciais que se seguirão são “uma luta entre o antigo regime que não quer morrer e o novo que ainda não nasceu”, descreveu o Presidente, Moncef Marzouki, quando pediu aos tunisinos para irem às urnas neste “momento decisivo”.

Marzouki e o seu Congresso para a República, tal como Mustapha Ben Jaafar, líder do Ettakol, que presidiu à Assembleia Constituinte, aliaram-se ao Ennhada em 2011. Foram segundos e terceiros então, arriscam-se a perder metade do eleitorado agora. “Estes partidos tiveram um desgaste político muito grande pela aliança ao Ennahda, fizeram um enorme sacrífico pela democracia mas isso normalmente não é bem compreendido pelos eleitores e vão ser castigados”, diz Álvaro de Vasconcelos.

O Ennahda não apresenta um candidato às presidenciais e defende que o poder na Tunísia tem de ser partilhado. Aprendeu com o Egipto, onde a Irmandade Muçulmana ganhou tudo nas urnas e depois perdeu tudo, com um golpe militar legitimado pelo jovens revolucionários na praça Tahrir que levou o país de volta a um regime autoritário e os islamistas de regresso às celas das prisões ou à clandestinidade.

Não é, por isso, provável que o Ennahda, com o seu slogan “consenso”, tome completamente conta da Tunísia. Pode é acontecer que o Nida Tounès o faça, avisa o analista português. “A minha preocupação para o futuro é que os membros do antigo regime regressem pela via eleitoral. O Nida Tounès pode ganhar as legislativas e as presidenciais. Apoiados nos quadros do RCD [ex-partido de Ben Ali], que ainda têm muito poder, e numa imprensa que tem sido extremamente dócil com eles, podem vir a impor-se como um regime autoritário e anti-islamista, que ataque o Ennahda, essencial para a transição”, diz Álvaro de Vasconcelos.

É possível mas é difícil que isso aconteça, admite o autor de As Vozes da Diferença – A Vaga Democrática Árabe. Afinal, a Constituição tunisina protege a democracia. Certo é que nenhum partido terá maioria e vai ser preciso negociar. Certo é também que o início da vida democrática da Tunísia não tem sido facilitado pela vizinha Líbia, por um lado, mas que a Argélia de Abdelaziz Bouteflika também não quer ver triunfar. Afinal, isso acabaria com os fundamentos de legitimação de um regime que se impôs graças à ameaça islamista.

A Tunísia é “uma espécie de ilha, uma aldeia do Asterix da democracia”, descreve Álvaro de Vasconcelos. “Ainda pode ser que a Tunísia não consiga”, escreve a libanesa Roula Khalaf. Mas até ver, “ainda sustém o sonho da liberdade”.

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