Francês que atacou Museu Judaico de Bruxelas foi carcereiro de reféns na Síria

Governos temem regresso de cidadãos europeus que tenham combatido nas fileiras jihadistas. O Estado Islâmico, pelo seu lado, dirige a sua propaganda para recrutar ocidentais.

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Nemmouche vai ser julgado na Bélgica por “assassínios num contexto terrorista” BENOIT PEYRUCQ/AFP
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A alegria de um jihadista do Estado Islâmico numa parada militar em Raqa, na Síria Reuters

Passou meses na Síria com combatentes radicais do Estado Islâmico (EI), foi carcereiro de jornalistas raptados, torturou prisioneiros. Voltou à Europa, e levou a cabo um ataque no Museu Judaico em Bruxelas, matando quatro pessoas. Foi apanhado num controlo rotineiro. O pesadelo do jihadista europeu que vai combater para a Síria nas fileiras do EI e volta sem ser detectado para levar a cabo ataques num país ocidental confirma-se no caso de Mehdi Nemmouche, agora que jornalistas franceses o identificaram como um dos seus guardas numa prisão de Alepo, na Síria.

Quatro jornalistas franceses que foram raptados na Síria pelos combatentes do EI entretanto libertados declararam, embora com graus de certeza diferentes, que Nemmouche foi um dos guardas encarregados deles numa prisão síria, segundo o jornal francês Le Monde. Ele é o principal suspeito do ataque ao museu judaico de Bruxelas e deverá ser presente a 12 de Setembro em tribunal, acusado de “assassínios num contexto terrorista”.

O jornalista da revista Le Point Nicolas Hénin, preso durante dez meses na Síria e libertado em Abril, contou agora que Nemmouche fazia parte de um grupo de franceses que torturava prisioneiros sírios. “Todas as noites, choviam golpes na sala onde eu próprio tinha sido interrogado. A tortura durava a noite toda, até à oração da madrugada”, relatou. O próprio Hénin diz ter sido “maltratado” por Nemmouche. “Olhava para as mãos, estalava os dedos como um pugilista e ajustava as luvas. ‘Gostas destas luvas de mota?’ perguntava. ‘Comprei-as para te bater. Só para ti. Gostas delas?’”

Nemmouche, um francês de origem argelina de 29 anos, foi apanhado num controlo policial rotineiro num terminal rodoviário em Marselha dias depois do ataque ao museu judaico em Maio. Foi entretanto extraditado para a Bélgica.

São casos como este, ou como o do homem que aparece no video a matar o jornalista James Foley com um sotaque londrino, que deixam os países europeus especialmente apreensivos. Nos Estados Unidos, dizia a revista britânica The Economist, a comunidade muçulmana é menor e as autoridades podem exercer uma vigilância mais apertada de entradas e saídas com a Síria como possível destino. Em países como o Reino Unido, França ou Alemanha, isso é impossível.  Da Alemanha, surgiu outra estatística perturbadora: entre os cerca de 400 alemães que se terão juntado aos jihadistas na Síria, um grupo de 20 são antigos membros do Exército.

Não se sabe muito sobre o papel dos combatentes europeus e americanos no EI. Muitas vezes ficam encarregados dos prisioneiros – falam fluentemente a sua língua e podem comunicar com famílias e governos para negociar resgates. Outras vezes vão quase directamente para o campo de batalha depois de um período inicial de doutrinação. A intensidade dos combates faz com que não haja falta de treino. A conquista rápida de território ajuda.

Jihad 5 estrelas

Na Internet, grande parte da propaganda é dirigida a ocidentais, com domínio de tempos mediáticos e de técnicas modernas de uso das redes sociais. Dois exemplos: a difusão do vídeo da morte do segundo jornalista norte-americano, Steven Sotloff, feita logo após um fim-de-semana prolongado nos EUA, e a presença de combatentes que mostram no Twitter tanto sucessos de batalha como luxos a que têm acesso (red bull) ou nos seus tempos de lazer (“faço coisas normais, como ir treinar, lavar a roupa, relaxar”, dizia um jihadista no Twitter).

“[O EI] tem uma campanha de redes sociais que envergonharia gurus do marketing dos EUA”, comentou J.M. Berger, autor do livro Jihad Joe: Americans Who Go to War in the Name of Islam à estação de televisão Al Arabiya.

O FBI disse entretanto ter identificado o responsável pela propaganda dos radicais: tratar-se-á de um americano nascido em França, criado num subúrbio chique de Boston, filho de um médico sírio, endocrinologista do Hospital de Massachusetts. Chama-se Ahmad Abousamra, licenciou-se em informática pela universidade do estado norte-americano, e ter-se-á radicalizado após uma viagem ao Iémen em 2004.

Não há uma resposta fácil à questão do que atrai europeus e norte-americanos para um cenário de guerra. Mas as imagens vindas da Síria mostram um campo menos hostil do que o Afeganistão, e deu mesmo origem à hashtag (etiqueta) “jihad 5 estrelas”.

O perfil dos que se juntam aos combates é variado – dos jovens alienados que se sentem discriminados por serem muçulmanos até cidadãos integrados revoltados com decisões de política externa dos sues países, ou indignados com a falta de resposta às atrocidades cometidas na Síria por Bashar al-Assad.

"Islão para Totós"

Sublinhando esta diversidade, John Horgan, psicólogo especialista em terrorismo da Universidade do Massachusetts, dizia à revista New York que havia, ainda assim, um denominador comum: “o de pessoas que querem encontrar um caminho, um modo de fazer algo que tenha significado”. Muitas vezes “os recrutados são pessoas levadas por esta necessidade apaixonada de corrigir o que é percebido como uma injustiça, de restaurar a honra daqueles que a viram retirada.”

Muitos dos que partem não são extremistas, alguns nem sequer religiosos. A Economist lembrava o caso de dois britânicos que antes de viajarem para a Síria compraram na Amazon dois livros: O Islão para Totós (Islam for Dummies) e O Corão para Totós (Kuran for Dummies).  

A guerra na Síria e agora no Iraque está a atrair mais combatentes estrangeiros do que qualquer outro conflito, diz a revista britânica. A maioria são árabes. Entre os ocidentais, os britânicos são o maior grupo, mas a proporção para a população do país é maior na Dinamarca ou Bélgica.

A Síria também está a atrair cada vez mais mulheres jovens, que depois vão para o Twitter mandar convites às amigas dos países de origem para irem comer panquecas com Nutella na Síria com apelos à jihad ou justificações de assassínios brutais, tudo acompanhado de smiles e LOL. Há selfies de mulheres de véu integral, mal se vendo os seus olhos. Casar com um jihadista é visto como cool, e muitos já exasperam com propostas de casamento feitas pela net (não é algo de acordo com a lei islâmica, argumentam).

Os EUA já contra-atacaram com a sua própria propaganda – um vídeo usando imagens brutais do EI tenta que os potenciais recrutados pensem duas vezes antes de viajar até à Síria, sublinhando que o grupo mata e tortura outros muçulmanos e faz explodir mesquitas, conta a emissora CNN. O vídeo acaba com uma mensagem: “a viagem é barata porque não precisas de bilhete de regresso”, seguida da imagem de um corpo a cair de uma ribanceira.

Há combatentes arrependidos. Alguns quereriam lutar contra Assad, não disputar território a outros grupos rebeldes. Mas muitos temerão regressar aos seus países e ser acusados ou presos (já aconteceu com vários europeus). O debate foca-se agora no que fazer com quem possa estar arrependido e regresse ao país, num delicado equilíbrio entre acusações e penas para dissuadir os cidadãos de lutar na Síria ou Iraque, mas não demasiado fortes, pois já se provou que as prisões também são um campo usado pelos extremistas para recrutamento.

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