Treze condenados no maior processo de escravatura em Portugal

Estavam acusados 48 arguidos num megaprocesso cujo inquérito é de há dez anos. Penas variaram entre os cinco anos e seis meses e os 12 anos.

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Fernando Veludo/NFactos
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Esperavam-se 48 arguidos no maior processo de escravatura em Portugal, mas na sala do Tribunal de São João Novo, Porto, não estiveram todos presentes: eram pouco mais de 30. No final, numa leitura rápida do acórdão, a juíza Ana Paula Oliveira anunciou: 13 estão condenados pelo crime de escravidão, um “dos crimes mais graves”.

Uma família composta por três membros teve a pena mais pesada, com 12 anos de prisão para o casal e nove anos para a filha que, à data dos factos, tinha menos de 21 anos.

As penas para os restantes arguidos variaram entre os cinco anos e seis meses e os nove anos, sendo que houve quem tivesse sido condenado a sete anos e seis meses. Vários condenados praticaram os crimes em co-autoria sobre mais do que uma vítima, por isso o total de condenados é superior ao das vítimas, que são dez.

Dois dos condenados – José Manuel, a seis anos de prisão, Maria Helena Seixas, a cinco anos e seis meses – estão a ser investigados por outros crimes de escravatura, acusados de terem subjugado um casal, Manuel e Fátima Résio, durante “mais de 20 anos”.

Com mais de 30 mil páginas, este megaprocesso ouviu 65 testemunhas, a maioria vítimas e familiares. O julgamento começou em Setembro do ano passado e o inquérito é de há dez anos, 2004, embora os factos sejam bastante anteriores. A juíza deixou, por isso, o recado aos arguidos: o facto de terem decorrido estes dez anos fez com que as penas fossem mais leves do que poderiam ter sido.

Disse também que não ficou provado que existissem clãs, nem que os arguidos estivessem organizados em associação.

O Ministério Público acusava 53 arguidos, mas um dos processos seria separado, com quatro arguidos julgados e um por notificar, pois encontra-se em parte incerta (a leitura do acórdão deste processo ficou para a semana).

Condenações raras
Os julgamentos de crimes de escravatura são raros, a punição ainda mais. Segundo o Ministério da Justiça, os dados disponíveis nos últimos dez anos sobre crimes por escravidão estão protegidos por segredo estatístico, pelo facto de as ocorrências (condenações) serem inferiores a três (os de 2013 só serão divulgados em final de Outubro). Peritos internacionais dizem que este é um caso histórico.

Por causa da dimensão, esperava-se uma leitura prolongada, mas esta sexta-feira Ana Paula Oliveira fez apenas um resumo do acórdão de 377 páginas. No documento, ao qual o PÚBLICO teve acesso, podem ler-se alguns exemplos da forma como actuavam. Descreve-se que “aliciavam e encaminhavam, controlavam e exploravam” os trabalhadores, tratando-lhes da documentação e transporte. “Através de formas de intimidação e violência física, aterrorizavam os trabalhadores visando obter, à sua custa e contra a sua vontade, lucros patrimoniais e económicos”. E continuam: “Tais pessoas recorrem ainda à intimidação, privação de liberdade e violência física, contra quem criar ou pretenda criar obstáculos à prossecução dos seus objectivos ou contra quem denunciar a situação, designadamente informando as entidades policiais das suas actividades”.

Por exemplo, três vítimas foram escravizadas pela família condenada a 12 e nove anos e o acórdão diz que levaram uma delas para Espanha, em 1993, retiraram-lhe os documentos de identidade e extorquiam-lhe o dinheiro que lhe era pago pela actividade agrícola – a vítima pediu muitas vezes para regressar a Portugal, sem sucesso.

No acórdão, os juízes deixaram uma série de “identificadores da situação de escravidão laboral”: “A retenção dos documentos do trabalhador, a retenção de salários, a imposição de produção de trabalho durante longos períodos temporais, controlo permanente e contínuo, confinamento a espaços, proibição de contactos e movimentos, isolamento social, desconhecimento da língua, sujeição a maus tratos, coacção e ameaça.”

O crime de escravidão, punido com pena de cinco a 15 anos, é assim definido pelo Código Penal português: “Quem a) Reduzir outra pessoa ao estado ou à condição de escravo; ou b) Alienar, ceder ou adquirir pessoa ou dela se apossar com a intenção de a manter na situação prevista na alínea anterior.”

Não se define o que é escravatura. A juíza citou, porém, um acordão do Tribunal da Relação do Porto de Janeiro de 2013 - que condenou dois indivíduos por este crime (a sete anos e seis meses, e a cinco e seis meses) - no qual se lê que “por escravatura entende-se ‘o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exercem todos ou quaisquer atributos do direito de propriedade”. Acrescenta-se: “Cabe na previsão legal a escravidão laboral, nos casos em que a vítima é objecto de uma completa relação de domínio por parte do agente, vivenciando um permanente ‘regime de medo’, não tendo poder de decisão sobre o modo e tempo da prestação do trabalho e não recebendo qualquer parte da sua retribuição.” 

Levantando o tom de voz com gravidade, a juíza Ana Paula Oliveira, no final, sublinhou, a olhar para alguns arguidos sentados na sala, que este “é um crime muito grave”. “Está a proliferar nesta sociedade, acontece com muita frequência nomeadamente com a colaboração dos patrões espanhóis”. E encerrou a sessão: “Espero que isto seja uma lição de vida para todos vós.”

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