Paulo, o montanhês

Ouro e Cinza, de Paulo Varela Gomes — ou a inteligência amorosa das coisas

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Algumas crónicas de Paulo Varela Gomes estão entre as melhores páginas que a literatura portuguesa produziu nos últimos anos Miguel Manso

Num livro de Magris, creio, e dirigida a quem não recordo, deparei com a expressão “inteligência amorosa das coisas”. Não encontro melhor do que ela para descrever a forma como Paulo Varela Gomes observa o mundo que o circunda, e sobre o qual redigiu dezenas de crónicas ao longo de vários anos, agora reunidas neste Ouro e Cinza.

Desconhece-se a razão da escolha de tão belo quanto enigmático título. A Internet indica-nos um precedente, em livro de trovas da autoria de um poeta brasileiro com o portentoso nome Petrarca Maranhão, nascido em Manaus em 1913 e falecido em Petrópolis em 1985. Talvez Ouro e Cinza pretenda evocar a locução latina et in pulverem reverteris, que ao longo de séculos deu mote a abundante literatura devocional. Entre essa vasta oratória, toda piedosíssima, encontramos o Sermão da Cinza, proferido em 1662 pelo padre Bartolomeu do Quental, pregador de D. João IV e de D. Afonso VI, missionário em Pernambuco e em Goa. Aí lemos, a dado passo: “Os que sois ouro, e andais sobre as cabeças das estátuas, não presumais; os que sois barro, e andais pelos pés delas, não desmaieis, que o barro e mais o ouro se hão-de converter na mesma cinza.”

Também em cada página deste livro se pressente a consciência de que, um dia, o tempo se encarregará de irmanar ouro e barro na mesma cinza. É esta percepção da efemeridade de tudo quanto existe que faz de Paulo Varela Gomes um historiador paradoxal, um cultor de Clio que nos exorta a odiarmos a História: “Isso: a história, o comboio da história, essa metáfora que avança largando fagulhas e provocando incêndios, o comboio que uma poderosa locomotiva puxa. Marx disse-nos o nome dessa locomotiva: capitalismo.”

Como é óbvio, o autor de Ouro e Cinza não odeia a História, até porque é na reconstrução do passado, real ou imaginário, que tantas vezes encontra lenitivo para o seu doloroso confronto com o presente (“Sei muito bem que aquilo que me faz chorar são as imagens que me recordam o que perdi ou julgo que perdi e provocam em mim a nostalgia de um passado pintado a tons de ouro precisamente porque passou e não acredito que possa voltar”). O que Paulo Varela Gomes contesta, isso sim, é aquilo a que Bertrand de Jouvenel chamou “concepção ferroviária da História”, à luz da qual esta é encarada como marcha inexorável de sentido único rumo a um futuro radioso e lindo, muito lindo. Em suma, não é a História que se questiona, mas a celebração festiva — dir-se-ia, quase onanista — com que o avanço dos tempos nos é apresentado e vendido sob a forma de “progresso”.

Perante o “progresso”, a atitude de Paulo Varela Gomes ultrapassa a da mera denúncia, atingindo os cumes da repulsa visceral. Desde a década de 90, decidiu viver no campo, nos arredores de Coimbra. Aí encontra, mesmo que de forma esparsa e fragmentária, fugazes resquícios de um pretérito perfeito: “O mundo era muito mais bonito há duzentos anos do que é hoje”. Além do refúgio campestre, descobriu outra forma de viajar no tempo, que foi viajar no espaço. Fez larga estada no Extremo Oriente, para que Goa lhe devolvesse o passado que em Portugal perdera. Diz-nos, a este propósito, que “os países estrangeiros, verdadeiramente estrangeiros (estranhos, de outra civilização), são o passado”. É isso que o faz amar a Índia, sem que tal paixão o faça perder a lucidez e a intuição críticas, a ponto de esclarecer os incautos que “há mais coisas que [detesta] na Índia do que aquelas de que [gosta]”.

Ei-lo, portanto, nas vestes de um militante da rejeição absoluta, protagonista da “grande recusa” marcusiana, levando a tal extremo essa postura que, por exemplo, jamais regressou à tão amada vila de praia e da sua infância, hoje devastada pela estúpida cupidez do lucro. Para quem, como ele, cultiva uma atitude tão drástica de rejeição do presente, a memória desempenha um papel fundamental. De fio a pavio, Ouro e Cinza é atravessado por uma indisfarçada nostalgia. Onde menos se suspeitava, desvenda-se portanto um adversário tenaz da “catástrofe da mudança”, alguém que acima de tudo aspira à quietude e ao silêncio, e fala com admiração dos “homens do Portugal antigo”, que em 1961 combateram até à morte em defesa de Goa, Damão e Diu. Estamos diante de um radical conservador (o que é muito diferente de um conservador radical) cuja genealogia e cujo estatuto de intelectual público de esquerda lhe permitem produzir afirmações que, na boca de outros, seriam de imediato apodadas de reaccionárias.

Perdida a esperança de transformar o mundo, Paulo Varela Gomes melhora-o — aliás, muito substancialmente — através da sua iconoclastia, condensada num humor corrosivo e ácido, mordaz o suficiente para abalar os espíritos mais conformistas, mas nunca excessivamente desmedido a ponto de ofender terceiros (bem, a Mota Engil é um pouco maltratada…). O autor, já se disse, tem a inteligência amorosa das coisas e, mesmo que porventura conteste essa caracterização, é um humanista, quer na infinidade dos seus interesses, quer na impetuosidade com que luta contra as injustiças terrenas, quer ainda na forma como se condói pelo sofrimento alheio, seja o de um cão que lhe morre nos braços, seja o de uma criança perdida nas ruas do Rio de Janeiro.

Não admira, por conseguinte, que Paulo Varela Gomes se confronte, não poucas vezes, com a questão do mal absoluto e radical, aquela maldade tão intrinsecamente inscrita na natureza humana que o faz dizer, com exagero retórico: “São poucas, em toda a parte, as pessoas de quem realmente gosto, de quem gosto lá no fundo da alma”. Surpreende-se, com espanto e pavor, quando o mais tenebroso dos males lhe aparece à frente de modo inesperado ou comezinho. A caça e as touradas, por exemplo, despertam-lhe vibrante condenação. Noutra crónica, refere que os exterminadores nazis, para acalmarem as suas vítimas antes de estas entrarem nas câmaras de gás, lhes davam sabonetes feitos de pedra, fazendo-lhes crer que iriam apenas tomar um duche. Pior ainda, recorda que houve pessoas que pensaram no assunto, debateram-no em reuniões, encomendaram os sabões de pedra a um fabricante previamente seleccionado, aprovaram o protótipo e receberam os caixotes, verificando se tudo estava de acordo com as especificações exigidas. 

Mas se é severamente negativo o atestado que atribui à contemporaneidade — e, em particular, à contemporaneidade portuguesa —, Paulo Varela Gomes reserva o seu desalento para a escrita, desgastada e cáustica. O olhar, esse, permanece juvenilmente aberto a captar a essência do belo, deixando-se comover até às lágrimas quer na contemplação de um quadro de Bellini ou das fotografias de Larry Burrows, quer perante alguns planos do filme Aquele Querido Mês de Agosto. Sem cair em confessionalismos piegas, muito frequentes em alguns dos nossos cronistas, Paulo Varela Gomes não tem pudor em contar-nos episódios em que se deixou emocionar até ao limite, nem guarda para si as experiências sensoriais mais intensas que lhe aconteceram na vida, como a daquela noite sumptuosa em que percorreu sozinho o lago de uma barragem, ou da outra em que subitamente se viu envolto por milhares de microorganismos marinhos que em seu redor lançavam uma estranha luminosidade, fosforescendo como pirilampos de prata.

Desta forma, mesmo repudiando a actual “linguagem da exibição pública de convicções ou afectos”, Paulo Varela Gomes estabelece com os seus leitores laços de intimidade que não são comuns. Obteve o estatuto de “cronista de culto” por várias razões, entre as quais avultam a meninice travessa do seu espírito, a aversão ao realismo (“o mais desprezível dos valores”), a candura que o faz confessar-nos as suas quimeras e os seus sonhos mais íntimos.

No seu espírito existe, sem dúvida, um incomensurável potencial de desprezo e furor, sentimentos que, todavia, correm a par de uma enternecedora capacidade de deslumbramento perante um planeta em equilíbrio instável e todos quantos efemeramente o habitam. 

Portugal é sempre o horizonte de referência da sua geografia sentimental, mesmo quando se encontra em Goa — ou justamente por se encontrar em Goa, que para ele é mais portuguesa (“meu Portugal feliz e tropical”) do que o rectângulo feio, sombrio e sujo onde o destino o condenou a viver. É sintomático, de resto, que o tópico “estrangeiros em Portugal” esteja tão presente na sua obra, quer nas crónicas de Ouro e Cinza, quer nas ficções de O Verão de 2012 e de Hotel. A terra portuguesa, e os males que tanto lhe fizeram ao longo de décadas, são das questões que mais dilaceram Paulo Varela Gomes. Daí a raiva funda e tremenda, emitida a partir de Goa: “Ah, sim, são tão ridículos aí, vocês e o vosso futebol, a vossa política de anedota que mete pena a toda a gente, o vosso falhanço quotidiano, a vossa incapacidade de ser alguma coisa que não simpáticos, o desprezo condescendente com que olham para vós, tão pequeninos e tão tristes nesse ridículo rectângulo de economia falida, sociedade amarga, cultura de empréstimo, entregue a esse ridículo destino de pertencer a essa União de falhados”.

Convergindo, pela faixa da esquerda, com outro leit-motiv de alguns conservadorismos (por vezes, dos mais reaccionários), o autor assume-se como um incorrigível pessimista, atormentado pela “incrível fragilidade da sensatez nas sociedades humanas”. Ainda assim, a leitura deste livro constitui, mesmo para os pessimistas mais incorrigíveis, um raro momento de felicidade pura. A Ouro e Cinza só podemos censurar uma coisa: é demasiado breve. Apesar das suas mais de 200 páginas, trata-se de uma selecta excessivamente selectiva, que usou malha demasiado fina na repescagem dos muitos textos que Paulo Varela Gomes escreveu durante tantos anos, nos mais diversos lugares. Para a próxima, reivindica-se maior generosidade para com os seus leitores, que já vão sendo muitos — e cada vez mais devotos.

Entre eles, desenganem-se todavia os que julgam poder alcançar um nível semelhante de escrita. Algumas páginas de Ouro e Cinza, como as que descrevem paisagens ou lugares, encontram-se entre as melhores e mais belas que a literatura portuguesa tem produzido nos últimos anos. Para escrever desta forma, o autor decerto seguiu o conselho dado por Bertrand Russell a um jovem aspirante a romancista, que um dia lhe perguntou o que era necessário para concretizar esse intento. Recomendou-lhe o filósofo apenas duas coisas: ler e escrever muito. Paulo Varela Gomes leu muito, e de tudo. Nas primícias, Emilio Salgari, por sinal evocado em Ouro e Cinza; depois, foi indo por aí fora. Lamenta-se, a dada altura, de ter nascido cedo ou tarde de mais. Mas, no mínimo, terá de reconhecer uma coisa: no tempo que era o seu não havia televisão ou Internet para fazer concorrência aos livros. A doce aprendizagem do tédio, que realizou na juventude, seria impossível nos nossos dias, marcados pelo pavor dos “tempos mortos”. Daqui resultaram uma cultura enciclopédica e uma erudição imensa, que vão muito para lá do campo universitário de especialização do autor mas que nunca são apresentadas de forma pomposa ou exuberante. A subtileza do estilo e a beleza neoclássica da prosa nascem de um esforço de concisão que se adivinha extenuante. Paulo Varela Gomes domina como poucos a economia política do verbo, sabendo escolher sempre a palavra certa, e nada mais do que ela. Apre, até irrita.

No exame final, as estrelas são cinco porque não há seis. O ouro que refulge nestas páginas talvez um dia se converta em cinza. Et in pulverem reverteris é lei universal, que se aplica tanto à obra como ao seu autor. Mas não, não o chorem já. Saibam merecê-lo, porque é privilégio tê-lo. Como este, há poucos.
 

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