Versos de puro nada

Uma poesia sedutora e imoral, que nos faz visitar uma antiga história literária e lança um riso saudável a alguns puritanismos.

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Poeta prestidigitador, Daniel Jonas habita anacronicamente um tempo que não é o contemporâneo FERNANDO VELUDO/ NFACTOS

Ainda antes de começar a ler os poemas deste livro — de título lacónico, unissilábico — terá o leitor de saber que se tratam de sonetos, já que tal indicação figura como subtítulo na folha de rosto.

Experimentemos citar um deles (o quinto, mas poderia ser outro qualquer), para nos iniciarmos numa espécie de língua morta: “Sonhando danças, vígil, marcas passo./ Vivendo dormes, vives se adormeces/ Na caixinha de música em que esqueces/ Como um velho sobre o éter do bagaço./ Oh, em ti rodopias, pobre piasca,/ Que sonhas teu compasso visionário,/ A falsa valsa, o baile imaginário/ Nos clássicos salões da tosca tasca./ E abraços tantos são em que te abraças/ Que em sonhos lasso o abraço lhe prolongas;/ Em aguardente imerso o capitão / Assim aceita os braços de outras braças./ A vida... Porque nela te delongas? A vida cabe toda num caixão”. 

Talvez a língua da poesia seja sempre uma língua morta, como pretendia o poeta italiano Giovanni Pascoli, mas neste caso é-o mais do que nunca. Um intenso perfume anacrónico solta-se destes sonetos, não apenas por serem sonetos, essa forma fixa com todos os seus constrangimentos, mas porque actualizam uma antiga retórica, uma tropologia e uma variedade de esquemas formais — prosódicos, rítmicos, respeitantes à cesura do verso, sonoros, etc. Aliterações, consonâncias, assonâncias, quiasmos, anáforas, hipérboles: esta poesia é uma festa de exuberância barroca, de estranheza maneirista e de declinação clássica. Tanto nos pode remeter para Camões como para os sonetos de Shakespeare. Por isso é que se impôs a citação de Pascoli, que devemos entender não como a identificação da poesia com uma arte mortuária, mas como uma língua que restitui vida. 

Colocando-se neste território anacrónico, Daniel Jonas mostra bem que é um poeta prestidigitador e, além disso, capaz de habitar poeticamente um tempo que não é o contemporâneo. Talvez esta seja a definição do intempestivo. Tanto talento, tanta capacidade de se mover no interior dos clássicos, tanta prestidigitação linguística e retórica (algo que sempre se deu a ver, em especial num outro livro de sonetos, Sonótono, editado em 2007 pela Cotovia, que talvez não alcançasse o nível de elaboração deste ) correm o risco de serem vistos como pura exibição do métier, do poeta dotado daquilo a que dantes se chamava “oficina” e que entrou há muito em descrédito, tendo passado a ser visto como algo a que falta o essencial. Contra esta ideia, que é muitas vezes certamente justa, podemos dizer que estes sonetos de Daniel Jonas nos libertam e nos deslocam para paragens bem distantes daquelas em que grande parte da poesia portuguesa contemporânea nos instala. Não se trata de estabelecer arbitrárias oposições ou de jogar uma coisa contra a outra. Mas é com enorme prazer, e com a convicção de que o “jogo” não é fútil nem inocente, que lemos os sonetos de Daniel Jonas e, por eles, acedemos ao que de mais originário tem a palavra poética: essa experiência amorosa com a linguagem, a euforia da palavra encontrada, isto é, trouvée, objecto de um trobar, como era a missão do trovador. 

De que falam estes sonetos, qual é o seu tema? Deus, o amor, a morte, o tempo e outras minudências. No soneto de abertura, há mesmo uma referência implícita, quase jocosa (mas o jogo e o divertimento estão sempre presentes), ao próprio autor, Jonas de seu nome, como o profeta que é engolido por uma baleia e depois expulso do seu ventre: “Do ventre da baleia ergui meu grito:/ Senhor! (dizer teu nome só é bom),/ Em fé, em fé o digo, mesmo com/ Um coração pesado e contrito (...)”. Este é um bom exemplo de como toda e qualquer dimensão pessoal que encontremos neste sonetos é sempre a de uma pessoalidade mítica, pela qual não se acede à figura empírica do autor e de uma experiência vivida na primeira pessoa. E, ainda que seja possível isolar alguns núcleos temáticos, como aqueles que acima referimos, muitos destes poemas, em rigor, não falam de nada. Dir-se-ia mesmo que eles se aplicam — não é tarefa fácil — a isentar-se tanto da referência como da significação. Como o poeta Guilherme IX de Aquitânia, Daniel Jonas poderia dizer: “Farei um verso de puro nada”. E muito do que não cabe nesse “nada” é uma tópica, como lhe chamava a retórica antiga, isto é, um conjunto de “lugares”, de topoi, de reservas temáticas onde se vai buscar a matéria do discurso e de onde emerge a palavra poética — num eterno jogo transgressivo com os seus códigos.
 

 
 

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