Uma família de Singapura

A graça de Ilo Ilo está na sua justeza, na profunda credibilidade das suas personagens, no realismo “doméstico” com que os seus ambientes são descritos.

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É quase certo que qualquer português sabe mais sobre, por exemplo, a Coreia do Norte, que no entanto é um país “fechado”, do que sobre Singapura, que no entanto é um estado aberto e cosmopolita.

Entre a memória, mais ou menos mítica, do tempo em que foi uma colónia britânica, e a reputação presente de grande praça financeira onde o dinheiro abunda ou, pelo menos, se ostenta, poucos terão no espírito uma imagem “comum” de Singapura: como vivem as pessoas, como são as ruas, que preocupações têm. Uma das coisas que o cinema, apesar de tudo, ainda faz bem é esta aproximação, quase convivial, a universos que doutra forma permaneceriam estranhos. E esbater a estranheza - portanto, o contrário do “exotismo” ou do cinema turístico - é o que faz Ilo Ilo um filme de Singapura (em si mesmo uma raridade, pelo menos por cá), primeira longa-metragem de um jovem realizador nascido em 1984, Anthony Chen, Caméra d’Or no Festival de Cannes do ano passado.

É um filme “de época”, mas de época recente: final dos anos 90, época de crise financeira asiática, particularmente sentida numa “cidade-mercado” como Singapura. É já esse o vento que sopra sobre as personagens de Ilo Ilo, o pai e a mãe, ele um homem de negócios, ela uma funcionária administrativa, personagens oriundas de uma classe média aparentemente sólida mas que cedo, no filme, começam a entrever a ameaça a essa solidez. Mas ao princípio a solidez ainda é a suficiente para que o casal contrate uma criada filipina (também aprendemos, portanto, alguma coisa sobre os movimentos migratórios dentro da Ásia) para tomar conta do filho, Jiale, um garoto de dez anos, porque estão demasiado ocupados com o trabalho e porque a mãe está grávida outra vez. São os ingredientes narrativos que bastam a Chen para compor um retrato de uma família de Singapura em tempo de crise, e para contar a história, ao mesmo tempo um pouco cómica e um pouco triste, da relação de um miudo solitário com a sua “tia” filipina (como aparentemente em Singapura os miúdos chamam às amas).

A graça de Ilo Ilo está na sua justeza, na profunda credibilidade das suas personagens, no realismo “doméstico” com que os seus ambientes são descritos. Já agora, na subtileza com que nunca deixa o primado narrativo ser ultrapassado pelo “discurso” ou pela “reflexão”, histórica ou social - isso é uma coisa que lá está em fundo, recortada e definida pela narrativa mas deixada em eco, em contexto. E uma forma de filmar a infância sem as “super-crianças” do cinema americano, uma infância muda e desajeitada, calorosa ainda que por vezes sofrida (a cena do castigo na escola, cuja violência cruel, articulada com o cerimonial nacionalista que a precede é o ponto em que Chen mais evidentemente deixa um apontamento crítico sobre o seu país). Nesse olhar sobre a infância, e sobre o seu pequeno protagonista, Chen faz lembrar bastante o japonês Hirokazu Koreeda. E talvez um pouco mais do que só ele: há uma sombra que também está em Koreeda e que se espalhou bastante por vários cinemas asiáticos, como o de Taiwan (“Ilo Ilo” também lembra um bocadinho o o Edward Yang de “Yi Yi”, em tom menor e mais “corrido”) e, pela amostra, o de Singapura. Sim, falamos do senhor Yasujiro Ozu e das suas lições práticas sobre como filmar as vibrações de uma sociedade inteira a partir de pequenas células domésticas e dos seus rituais. “Ilo Ilo” aprendeu alguma coisa com essas lições, e se dizer isto não chega como elogio não imaginamos o que chegará.

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