Como lida a protecção de menores com jovens gays e lésbicas? Nem sempre bem

Há técnicos das comissões de protecção que dizem que tratam estas vítimas como todas as outras. Há quem assuma que se calhar não está a fazer tudo bem e há quem reclame mais recursos. Resultados de um diagnóstico inédito.

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Em menos de um ano, a Casa Qui recebeu nove pedidos de ajuda de jovens a precisar de acolhimento Nuno Ferreira Santos

Tiraram a filha do futebol. Obrigaram-na a vestir-se de forma mais feminina. Quando ela tinha 16 anos, a mãe descobriu as cartas que ela trocava com uma namorada. Quis afastá-la da escola e mantê-la em casa. Dizia “que a sua filha não era doente e que eram uma família séria”. Outro pai, quando o filho lhe disse que era gay, deu-lhe uma tareia e proibiu-o de falar de novo no assunto. A mãe, que até parecia apoiar o filho, calou-se também. Muitos casos de jovens lésbicas, gays, bissexuais ou transgénero (LGBT), tantas vezes alvo de violência familiar, acabam por chegar às comissões de protecção de menores. Estão estas estruturas preparadas? O que acontece quando os jovens são expulsos de casa e têm que ir para uma instituição de acolhimento? Deve haver centros de emergência só para LGBT?

O "Diagnóstico de Experiências, Competências e Respostas na Intervenção Institucional com Jovens LGBT em Situação de Violência Familiar e/ou Expulsão de Casa", feito pela Casa Qui, foi apresentado nesta quarta-feira em Lisboa. É o primeiro projecto da associação criada em 2012. Tem o financiamento do EEA Grants, regulado pela Fundação Calouste Gulbenkian ao abrigo do Programa Cidadania Activa.

Foi elaborado a partir de questionários e entrevistas a 19 dirigentes e 39 técnicos de Comissões de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ), na sua maioria, mas também de Instituições Particulares de Solidariedade Social que acolhem crianças e jovens. Abundam, na síntese tornada pública, citações das conversas mantidas. Algumas declarações chocam pela “falta de conhecimento” que revelam, admitiu ao PÚBLICO Rita Paulos, directora executiva da Casa Qui. “Mas não vamos esperar que as pessoas percebam as coisas se não têm formação, se não lidam com os casos, se não conhecem...”

Excerto de uma entrevista a uma técnica de uma CPCJ que esteve a acompanhar um menor transexual: “Sim, pronto, se calhar tenho de ter algum cuidado por causa da minha curiosidade. Por exemplo, perguntei aquilo das mamas. Ele mostrou logo as mamas, mas eu fiquei a pensar ‘Bem, agora se calhar já exagerámos, não é?’ Mas confesso, foi mesmo uma curiosidade minha pessoal porque eu só via aquilo na televisão e, ao vivo, o miúdo a dizer-me: ‘Então, estão-me a crescer as mamas e não sei quê’ ‘Mas tu tens?’ ‘Tenho’ ‘Então podes mostrar-me?’ E ele pronto. É verdade, ele tem, igual às minhas (risos). Depois agente pensou isso... Mas não aqueceu nem arrefeceu no processo, naquilo que agente ia trabalhar.”

Ou esta, de outra técnica de outra CPCJ, que a propósito do caso do rapaz que foi espancado pelo pai foi questionada pela equipa da Casa Qui sobre como é que achava que outros colegas de comissão iriam lidar com o processo se ele lhes fosse parar às mãos: “Eram capazes de o aconselhar a que se mantivesse... que se calhar não assumisse, que ficasse mais calado, hmm… ou que fosse procurar um técnico na área para ver se era mesmo a orientação que ele queria.”

“Conspiração do silêncio”
São os próprios técnicos questionados que, em muitos casos, admitem que sentem necessidade de formação, apoio, recursos: “Precisamos é de serviços para terapia familiar”, defende um. “Os recursos em termos de psicologia e saúde mental são escassos”, afirma outro.

Mas mostram-se abertos. Alguns números: desafiados a avaliar, numa escala de 1 (equivalente a “Nada”) e 5 (equivalente a “Muito”), em que medida as CPCJ e as IPSS estão familiarizadas com os conceitos de “orientação sexual e identidade/expressão de género”, 12 em 38 responde “4” ou “5” e 20 respondem “3” — sentem-se “mais ou menos” familiarizadas, resume Andreia Pereira, técnica superior da Casa Qui.

Há 26 que acham que a “sensibilidade” dos técnicos para esta temática e bastante boa. Isto, apesar de a maioria (34) relatarem não ter tido qualquer contacto com estes assuntos na sua formação.

A maioria conta que nunca lidou pessoalmente com casos de “crianças ou jovens encaminhados para a instituição onde trabalham por motivos relacionados com orientação sexual e identidade ou expressão de género”. Mas há 11 que dizem que sim, que isso aconteceu. E outros seis lidaram com menores que, apesar de terem sido sinalizados como estando em risco por outras razões, nalgum momento do processo revelaram ter uma orientação sexual ou identidade de género minoritária.

Henrique Pereira, professor e investigador de Psicologia na Universidade da Beira Interior, convidado a comentar o trabalho, na sessão que decorreu na Câmara Municipal de Lisboa, disse que existe uma “conspiração do silêncio” à volta deste tema das crianças e jovens LGBT e admitiu que isso explicará que sejam poucos os técnicos a dizer que já lidaram com estas situações.

Dulce Rocha, presidente executiva do Instituto de Apoio à Criança, também convidada a comentar os dados, lembrou os seus tempos de magistrada no tribunal de família e menores para dizer que lidou com casos em que as pessoas só contavam o que se estava a passar realmente com elas quando eram instigadas a fazê-lo. Se não se pergunta, elas não dizem.

Suicídio “3 a 4 vezes superior”
A taxa de suicídio entre os jovens LGBT é “três a quatro vezes superior” à dos restantes jovens, recordou ainda Henrique Pereira. Nos Estados Unidos estima-se que entre 12 mil e 24 mil crianças e jovens LGBT estejam a cargo de instituições, sendo que muitos fugiram de casa ou foram expulsos.

A Casa Qui é uma associação de solidariedade social criada em 2012 — só ela recebeu, em menos de um ano, nove pedidos de ajuda de jovens que precisavam de ser acolhidos por causa de conflitos com a família relacionados com a sua orientação sexual ou a identidade de género. A Casa não tem ainda um espaço próprio, a ideia é encaminhar as situações para as respostas mais adequadas, trabalhar em parceria com as instituições, prestar-lhes formação e serviços de consultoria, a qualquer hora em que surja um novo caso mais complexo.

O estudo apresentado nesta quarta-feira é o primeiro passo. Rita Paulos não defende para já a criação de instituições de protecção de crianças e jovens específicas para LGBT  — tema sempre polémico (quer antes de mais continuar a estudar e a trabalhar com as instituições que existem). Mais urgente, admite, pode ser encontrar respostas para jovens com mais de 18 anos, que apesar de continuarem muitas vezes dependentes das famílias, já não são enquadrados pelo sistema de protecção se são expulsos de casa.

Sara Teixeira, da Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, elogiou o diagnóstico da associação que, diz, ajudará a decidir políticas para que este tema ganhe mais visibilidade. Isto apesar de alguns técnicos parecerem defender que ele não é relevante: 14 entrevistados disseram que “a orientação sexual não é pertinente” na sua intervenção.

“Um jovem chegar ao [centro de] acolhimento e dizer que é gay já não ligam, vê-se nos filmes, nas novelas”, conta um. “O procedimento é o mesmo independentemente da orientação sexual”, diz outro. Será isto um sinal de uma sociedade avançada? Ou, como admite Henrique Pereira, sinal de que as pessoas “preferem enterrar a cabeça na areia” a enfrentar uma questão sobre a qual “impera uma brutal ignorância”?

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