Os “filhos espúrios” que a República enviou para o Niassa

Durante os quatro anos da Grande Guerra em África milhares de soldados portugueses habituaram-se a chorar em silêncio, a maldizer o exílio forçado numa terra distante, a morrer por falta de cuidados de saúde ou de preparação militar. Muitos perceberam fazer parte de um exército à deriva mal embarcaram. Outros, a maioria, nem sabiam o que era a Pátria, nem a Guerra, nem os alemães, nem o Niassa onde tantos acabariam por tombar.

Foto

Desde tempos imemoriais que a resistência ao recrutamento e a fuga à guerra insiste em contradizer as declarações grandiloquentes sobre o patriotismo e a coragem. Assim foi na primeira Guerra Mundial e por maioria de razão. A começar pelo estado do próprio exército, que era calamitoso. Até 1910, uns 15 % de alistados eram refractários, o que junto com as “sortes”, que poupavam uns poucos do serviço militar, e “as remissões”, que subtraíam os filhos dos mais ricos à tropa, reduzia o universo de recrutamento a 47% dos jovens masculinos. A República acaba com esse modelo, quer um “exército da Pátria”, uma força de milicianos, na qual o serviço militar seria obrigatório e onde não haveria lugar a “remissões”. Mas, a que exército poderia aspirar um país falido e mergulhado na convulsão de um regime revolucionário, que ora perseguia o clero, ora “rachava” os sindicalistas que organizavam greves?

No país em estado de sítio, era tarefa impossível conceder ao exército condições mínimas de equipamento, disciplina e moral para o transformar numa força credível. Entre 1914 e 1918 o governo da República registou nove ministérios. Alguns, como os dirigidos por Bernardino Machado ou o governo da União Sagrada, duraram meses (309 dias o de Bernardino, um ano e 39 dias a União Sagrada). Outros duraram dias. E João Chagas, vítima de uma tentativa de homicídio, não chegou sequer a tomar posse como primeiro-ministro. Pelo meio houve a ditadura de Pimenta de Castro, nos primeiros cinco meses de 1915, uma Junta Revolucionária e uma Junta Constitucional. Pimenta de Castro sucumbiria a um golpe de Estado. A 13 Dezembro de 1916 uma revolta de Machado dos Santos, o herói do 5 de Outubro, mobiliza tropas em Tomar para tentar derrubar a União Sagrada dirigida por António José de Almeida.

Produto de uma era de radicalismo, o exército estava dividido entre monárquicos e republicanos, entre oficiais de carreira formados no tempo dos reis e “jovens Turcos” contaminados pelos métodos da Carbonária. Afonso Costa, a alma mater dos primórdios da Primeira República, ferira ainda mais o espírito de corpo das forças armadas ao retirar aos militares os mais elementares direitos políticos – o de votar e de ser eleito. No princípio de 1915 o presidente Manuel Arriaga falava abertamente do “antagonismo entre o Exército e a República”. Não era caso para menos.

A indisciplina grassava nos quartéis e a penúria financeira atrasava salários e minava a operacionalidade do equipamento. Em 1914, o ministro da Marinha referia-se aos meios que geria (cinco cruzadores, um dos quais blindado, dois contratorpedeiros, três submarinos e 13 outras embarcações) como “um resto de marinha”. Quanto ao exército, o ministro da Guerra confidenciaria a Brito Camacho, líder do Partido Unionista, em Janeiro de 1915: “Não digo que tem pouco; digo que não tem nada”. A guerra na era industrial tornara-se um bem quase inacessível ao depauperado tesouro nacional: “Uma divisão para a frente ocidental, nas contas do ministro da Guerra, custava 35 mil contos, metade dos rendimentos anuais do Governo”, refere o historiador Filipe Ribeiro de Menezes.

A mobilização em tempos de crise

As duras privações da Guerra foram causa de particular influência na permanente instabilidade social que, em grande medida, contaminaria a esfera da governação e minaria a disciplina e a moral do Exército. Os factos mais graves relacionados com greves ou actos de insurreição social ocorreram a 19, 20, 21 Maio de 1917, com motins e assaltos no Porto e em Lisboa. Na capital registam-se 102 prisões numa só noite. O governador militar da capital, Pereira da Eça, teve de decretar o estado de sítio para controlar uma sublevação que provocou 23 mortos e 50 feridos. A 12 de Julho o estado de sítio é novamente decretado para Lisboa por causa de tumultos. Uma bomba provoca seis mortes e 28 feridos na capital. Neste período, que culmina com o golpe de Sidónio Pais, a 5 de Dezembro de 1917, as invectivas contra a guerra tornaram-se muitas vezes meros apêndices da hostilidade contra o regime. Um panfleto, intitulado “Alerta Portugueses!” recordava: “A primeira leva de 3000 homens (para África) já seguiu e em menos de um mês outras se seguirão… Pensai nisso, Mulheres e Mães portuguesas… Salvai da morte e da desonra vossos maridos e filhos e gritai comigo: Abaixo a maldita República, morte aos traidores”.  

Quando Carlos Selvagem, Cardoso Mirão ou o médico Américo Pires de Lima embarcam no Moçambique, que com as suas 6500 toneladas era o maior navio da Companhia Nacional de Navegação, não tiveram por isso direito a despedidas solenes nem a homenagens oficiais. Faziam parte da terceira expedição a Moçambique e há muito que a sorte das tropas nacionais na guerra se tinha dissolvido em esquecimento na luta diária pela sobrevivência. Na expedição anterior, que partira a 7 de Outubro de 1915, o oficial Júlio Rodrigues da Silva, na sua Monografia do 3º Batalhão Expedicionário do R.I. nº 21 à Província de Moçambique em 1915 , ainda se recorda de “três ou quatro pessoas” a darem “vivas e bateram palmas ao batalhão” algures no meio da Avenida da Liberdade. Meio ano mais tarde, o alferes médico Américo Pires de Lima viveria uma experiência bem mais gélida: “Princípio de Junho, à tarde, desfilou o batalhão de Campolide até ao Cais da Areia. Da parte da tropa, marcha resignadas fatalista para o desconhecido. Nem entusiasmo, nem desalento. Da parte do público, na longa travessia, a indiferença mais completa, como se tratasse de um regimento que fosse fazer manobras nos arredores da cidade. Nem interesse, nem sequer curiosidade; um vácuo mais doloroso do que a própria hostilidade”.

Para os soldados, a partida para África tanto podia significar o cumprimento de uma pena como uma porta para a salvação da miséria. Alguns soldados foram porque tiveram de ir, apenas. Muitos integravam regimentos que se envolveram em rebeliões contra os superiores, contra a República ou contra a ordem pública, caso do 31 do Porto. Muitos foram como voluntários. Um inquérito aos sargentos e praças do Regimento de Cavalaria n.º 3, citado no livro A Primeira Guerra Mundial na África Portuguesa, de Marco Arrifes, indica que 27 dos 74 inquiridos se ofereceram para o ultramar por razões monetárias, 13 fizeram-no por “motivos políticos”. Um foi por “desgosto”, outro “por ter sido abandonado pela família”, um terceiro “por ter sido indicado por alguns camaradas como chefe de um complot para matar oficiais e por isso recear ser castigado”. Vinham de quarteis instalados em todo o país. De Penacova, de Évora, mas principalmente das Beiras e do Porto.

Os primeiros contactos com a organização militar serviram para muitos de prenúncio para o que viria a acontecer – um interminável rol de exemplos de desorganização, irresponsabilidade, incúria e negligência. Cardoso Mirão e quatro soldados que se ofereceram como voluntários para formarem companhias indígenas partiram do Porto de comboio, chegaram a Lisboa e no depósito colonial tiveram dormir no chão. Nem capotes para o frio receberam. No Arquivo Histórico Militar conservam-se as prescrições para o embarque, desde o numeramento de camas ao local para os animais, a numeração de camas com giz, a localização da pólvora, das munições e das armas (longe da humidade e da máquina), o serviço de polícia e as brigadas de faxina tudo. Mas até entrarem no navio, os soldados e oficiais tinham de resistir a embarques com dias de atraso, onde a carne fresca chegou primeiro que as conservas de sardinha, onde medicamentos ou equipamentos militares cruciais não foram carregados para não atrasar ainda mais a viagem.

Pelas regras a bordo, o oficial mais graduado devia empregar todos os esforços para proibir o jogo, para proibir o fumo fora dos locais a isso destinados. Devia ainda providenciar para que as praças tomassem banho. Em tese, estas exigências podem parecer simples de cumprir. Mas era difícil conseguir aprumo, higiene e método numa legião de rapazes recrutada no mundo rural de um país onde o analfabetismo rondava os 70% da população. “O nosso lapuz das Beiras e Alentejo – a grande massa destas tropas – é, por natureza, por hábitos ancestrais, por desamor de si próprio, desleixado e porcalhão”, lamentava Carlos Selvagem nas suas memórias Tropa d’ África, Jornal de campanha de um voluntário no Niassa, publicado em 1924”. Aquilino Ribeiro, que assistira ao eclodir da Guerra em Paris, adivinhou logo o problema quando perguntou: “Em nome de que justa, necessária causa, se podem despachar para o matadoiro os meus pobres, ignorantes e pacíficos labregos?”. António de Cértima, autor de uma das mais dramáticas memórias da I Guerra em Moçambique (Epopeia Maldita) suspeitava que “às cegas, tinham trazido esta gente do continente, como se fossem agarrados de sorrelfa pelos campos”.

Poucos dias depois do embarque, a maioria tinha já consumido o farnel levado às docas pelas mães, mulheres ou namoradas. Os avisos sobre os perigos dos “três ss” (saias, sol e sereno, o cacimbo que torna as noites dos planaltos húmidas e gélidas) estavam já esquecidos. Durante o dia, a tropa subia dos porões, fazia ginástica e tomava o banho forçado. Para evitar o tédio e a nostalgia - até ancorarem nas baías do norte de Moçambique, as expedições tinham de passar um mês no alto mar -, o comando da terceira expedição organizou uma série de palestras sobre África e a guerra moderna. Os resultados foram tão deprimentes que acabaram por ditar o seu fim, para evitar danos maiores na moral das tropas. Os oficiais ficaram com mais tempo para as horas de aborrecimento no spar deck, onde por vezes Carlos Selvagem tocava piano.

Menos sorte tinham os soldados. Nas camadas inferiores dos navios, “nos esconsos das cobertas e porões, com calor insuportável, cheiro nauseabundo e repelente de centenas e centenas de criaturas com hábitos de porcaria e receosas do contacto da água, nunca deixou de se jogar, principalmente depois do recolher”, recorda o capitão Júlio Rodrigues da Silva. Ao fim de alguns dias, “todo o navio é um rumoroso e turbulento quartel flutuante, acoalhado de fasces tisnadas e imberbes, serapilheiras cinzentas de uniformes, toques de clarins, restos de rancho coalhado, emporcalhando todos os recantos dos porões e cobertas”, recordaria Carlos Selvagem.

A disciplina tornava-se ténue com o tédio, o medo e a falta de sentido de corpo. “Alguns graduados não era sem receio que desciam aos porões, onde a rufiagem refilava a qualquer ordem e deixava entrever as lâminas das facas, a propósito de tudo ou nada”, continua Júlio Rodrigues da Silva. António de Cértima teve de descer um dia a um desses porões e impressionou-se com os “dois centos e meio de homens que por ali se amontoam rebolando-se sobre míseros colchões postos no chão besuntados de gordura e vómitos”. A noite obrigava a que todas as luzes fossem apagadas, até a das brasas dos cigarros, para evitar avistamentos dos submarinos alemães que, entre outras vítimas, afundariam o Augusto de Castilho, comandado por Carvalho Araújo, em Outubro de 1918. Nos porões, na penumbra, os soldados que resistiam ao enjoo jogavam as cartas ou recordavam o mundo que deixaram. Carlos Selvagem ouvia-os da vigia do seu camarote a falar de saudades das “suas Marias”, do descanso das tardes quentes de domingo, “dos alqueires de milho ou almudes de vinho que tiravam com as colheitas”. 

“Cegos, gagos, míopes, herniados…”

Para a maioria, África era uma abstracção e a defesa da pátria uma ideia vaga. “A palavra Portugal ainda os emociona e enternece. A ideia Pátria, porém, não lhes perturba as digestões nem o funcionamento regular do sistema circulatório”, apontaria Carlos Selvagem. No caos da República, não houvera tempo nem para lhes preparar a moral nem sequer para os instruir com as armas. Na segunda expedição, as tropas aquarteladas em Mafra, onde recebiam treino militar, rebelaram-se e como castigo a sua partida para o ultramar foi antecipada. As consequências da falta de educação militar foram trágicas e não passaram ao lado da atenção dos contemporâneos. Uma parte do regimento 21 de Infantaria, punido com o envio para África, chegou a Moçambique em Setembro de 1916, mas “em meados de Janeiro um terço do seu efectivo estava absolutamente incapaz de qualquer serviço”, denunciava o deputado Tamagnini Barbosa nas sessões secretas da Câmara dos Deputados e do Congresso de Julho de 1917, dedicadas a debater a participação de Portugal na guerra.

Na expedição de 1917 “seguiram telegrafistas sem saberem ler nem escrever. Artilheiros desconhecedores do material, infantes sem instrução de tiro”, diria numa dessas sessões o deputado Vasconcelos e Sá. No relatório de 1919 que deixou em sua defesa, Sousa Rosa, comandante da quarta expedição, confirmaria: “Para aqui vieram praças de engenharia a quem só ensinaram canto coral; praças de artilharia que nunca viram montar e desmontar o material de montanha nem com ele fizeram fogo, tendo sido, neste clima depauperante que se lhes tem ministrado instrução a toda a pressa; praças de infantaria que mal sabiam carregar a espingarda”. Vasconcelos e Sá iria mais longe: “Tudo é possível quando vêm 1600 homens, soldados sem instrução nem disciplina, na sua maioria rapazes de 19 a 22 anos, quando para África todos o sabem, são úteis para resistirem devidamente ao clima homens feitos. Quando 1000 homens do batalhão 14 trazia talvez 200 dos seus soldados que são raquíticos, tarados e outros com doenças crónicas da tabela, que nem para a vida militar devem servir, cegos de um dos olhos, gagos, míopes, herniados, etc…”, pouco havia a fazer, lamentava Vasconcelos e Sá.

 “Se há desastres em África, não provêm eles do menor valor ou de menos competência dos nossos oficiais, ou do medo ou cobardia dos nossos soldados, mas da insuficiência da instrução e da pobreza do material”, diria Brito Camacho, líder do Partido Unionista, na oposição, falhas que atribuía à prioridade dada pelo Governo aos efectivos enviados para os campos de batalha na Flandres. Com pouca razão no que diz respeito à “pobreza do material”, porque, sendo, de facto, pobre e em muitos casos antiquado, o armamento dos soldados portugueses era bem melhor do que o dos alemães esquecidos da África Oriental, como assinalou o historiador António José Telo. Com toda a razão quando mencionava a “insuficiência da instrução”, que além de ter consequências dramáticas nas manobras militares teve custos humanos ao nível da saúde.

O problema da comida e da água

Para os doentes havia regras que lhes garantiam alimentação melhorada. Pelo menos aos que estavam nas enfermarias, já que as fomes por que passaram os soldados da Coluna do Lago ou as agruras dos que se aventuraram no território da actual Tanzânia para conquistar o forte alemão de Nevala nem sempre toleraram os comportamentos de humanidade normalmente dispensados aos enfermos. De resto, a qualidade dos alimentos deixava muitas vezes a desejar. “O leite, ao serem abertas as latas, geralmente aparecia podre e exalava um cheiro repelente. Imagine-se o espectáculo de um desgraçado, cheio de febres, a vomitar tudo, a quem se dava, como mimo dietético, uma lata de leite que, ao ser aberta, espalhava um perfume capaz de fazer vomitar as tripas a um avestruz”, desafiaria Pires de Lima.

Num exército estratificado pela condição racial e pela necessidade de recrutar milhares de carregadores que viabilizavam a logística das colunas que se aventuravam na selva, a dieta alimentar era muito variada. As ordens dadas aos provisores impunham normas para acondicionamento dos víveres, o seu registo detalhado, as horas do rancho quando a coluna estava em marcha ou estacionada, os mecanismos de requisição. Nas regiões remotas, o provisor, a quem competia gerir o depósito de alimentos, “terá de lançar mão a todos os recursos da região”, prescreveu-se. Comprará os géneros “que puder obter como: feijão, ovos, galinhas, bois, carneiros, cabritos, porcos, sal, hortaliças e milho, o qual fará moer à moda da região”. Procurará “informar-se se na região há comerciantes, pagando se tiver recursos, passando requisição no caso contrário”. Para isso, “deverá munir-se da moeda comercial da região, dinheiro ou panos”. As taras dos géneros, como sacas, barris, caixas, “podem servir de objecto de permuta com os indígenas”, lê-se nos regulamentos existentes no Arquivo Histórico Militar.

Como facilmente se compreende, na maior parte das vezes, os alimentos eram simplesmente saqueados aos indígenas – “requisitados”, no jargão militar. Quando tal era possível, ao menos. A Coluna do Lago, perdida na imensidão do Niassa, chegou a um ponto do território onde nada havia para comprar nem para “requisitar”. Sobreviveu através do recrutamento de três caçadores. Do nada, quase como mistério, chegam à coluna Regina Pietro, o “Pitala”, italiano do Piemonte, “fino com o vime e rijo como o aço, há muitos anos perdidos pelas florestas negras do Niassa”, Elias, um grego, “corpo alto e mal feito, de orelhas recortadas em renda de bilros”, e Kassan, “um indiano negro e pequenino, mas muito vivo e inteligente”, na memória de Cardoso Mirão. Foi a sua salvação.

Quando o sistema logístico das colunas de carregadores funcionava (ou quando havia estradas abertas e câmaras-de-ar para os camiões Kelly), os soldados europeus alimentavam-se de rações que António José Telo considera “ pouco apropriadas para Europeus em África, levando-se grandes quantidades de bacalhau, sardinhas em lata e, sobretudo, o chamado rancho confeccionado”. Gomes da Costa, o general que comandaria a última expedição a Moçambique e que deixaria para a posteridade um libelo acusatório arrasador para os governos da República sobre as suas responsabilidades na derrota, considerava o rancho confeccionado “a invenção mais infame que se conhece".

O momento mais comovedor da vida dos soldados era sem dúvida a chegada do correio. Entre a anarquia administrativa, o serviço postal parecia ser um milagre. Que se revelava até em zonas remotas como Metarica, no Niassa. Para lá chegar, uma carta enviada de Lisboa teria de passar por Lourenço Marques, subir à Beira e depois a Mocímboa da Praia, subir o Zambeze, passar por Chinde, o Chíndio, Luchenza, Fort Johnston, Zomba, Blantyre, no actual Malawi, até apanhar uma eventual missão de carregadores em direcção ao interior. Quando chegava o correio, “o coração sobressalta-se, ruborizam-se as faces, e instantaneamente nos tornamos insociáveis”, lembraria Cardoso Mirão. Quanto chegava a hora de responder, os soldados tinham “pressa em esquecer por momentos a guerra, a selva, a fadiga e as privações, para pensar afincadamente nas páginas de recomendações, beijos e saudades a mandar à família com a afirmação, quantas vezes falsa, duma saúde que não existia”.

Nesses momentos fugazes, “deixávamos o ar selvagem e brutal que a selva nos emprestava para nos tornarmos de novo homens, enternecidos e sentimentais, revendo a casa, a terra, os amigos, emocionados pelas recordações da família e mais que nunca saudosos da pátria e do lar”. Depois, quando o papel se esgotava, “recorríamos aos livros das companhias, surripiávamos as folhas dos cadernos da ordem, e por último, reduzidos à expressão mais simples, aproveitávamos o papel de embrulho dos caixotes da massa e da bolacha, cujos bordos endireitávamos à faca, a fingir de papel de carta”.

Nas memórias que deixaram, os soldados e oficiais que foram para a guerra em Moçambique evocam muitas vezes o dia do regresso como um desejo impossível. A baixa por doença era sempre um caminho para casa mais provável do que a vinda de tropas para substituição. Para Pires de Lima esse dia chegou em Outubro de 1917, quando aportaram a Mocímboa da Praia médicos frescos. “Após 16 meses de trabalho intensivo e ininterrupto”, teve baixa ao hospital e foi proposto à junta de Lourenço Marques, que a meio da guerra e perante o número alarmante de enfermos, teve a incumbência de validar ou invalidar as decisões dos médicos de campanha. No final de Novembro toma o vapor Quelimane em direcção a Lisboa. Em Freetown, Serra Leoa, juntam-se a um comboio de barcos que receberia protecção da marinha britânica na viagem até à Europa. Um dia, pela manhã, avista finalmente o estuário do Tejo e respira de alívio. Sobrevivera.

As primeiras notícias que recebe em Lisboa “foram profundamente tristes”. Souberam do desastre de Negomano, a mais severa derrota das tropas portuguesas em Moçambique. Depois, ficaram no Tejo parados durante horas. No cais, viu “algumas mulherzinhas do povo, as únicas mulheres portuguesas (além da família dos expedicionários) que assistiram ao desembarque. Levantaram altos gritos de revolta e compaixão, ao verem os soldados esqueléticos, macilentos e esfarrapados que chegavam de Moçambique”. Como na partida, o regresso a casa decorreu num cenário de indiferença das autoridades. “A esperar-nos, ninguém, nem a Cruz Vermelha, na hipótese, infelizmente verdadeira, de trazermos doentes, que careciam de ser transportados em maca”. E sentiu “mais uma vez o travor amargo da injustiça, que pesava sobre os meus pobres soldados, assim imerecidamente tratados como filhos espúrios”.

Amanhã: O convívio com a morte na baía do Tungue

Foto destaque: Travessia do Rovuma através de uma ponte improvisada (AHM)
 

Foto
O paquete "Moçambique" atracado em África, local desconhecido Museu da Marinha
Foto
Bivaque de tropas portuguesas no norte de Moçambique AHM
Foto
Foto
Posição de metralhadora junto ao rio Rovuma AHM
Sugerir correcção
Comentar