Contestação a Nicolás Maduro expõe fractura do movimento chavista

Os críticos falam em "vazio de liderança e de poder". Pela primeira vez, o regime questiona a qualidade dos líderes.

Foto
Maduro no programa de rádio "Em contacto com Maduro" no dia 1 de Julho Reuters

A liderança e autoridade do Presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, estão novamente a ser postas em causa, mas desta vez a contestação vem de dentro do movimento socialista bolivariano fundado pelo seu antecessor e patrono político, Hugo Chávez. Nas últimas semanas, as tensões acumuladas entre as diversas facções que constituem a cúpula do chavismo tornaram-se públicas e indisfarçáveis – com o poderoso Exército nacional a avisar que está a seguir “com atenção” as movimentações nos bastidores do poder em Caracas.

O afastamento, a conta-gotas, de alguns dos históricos do Partido Socialista Unido da Venezuela e dos Governos de Chávez, provocou uma reacção inusitada de dissidência pública que terá apanhado o próprio Maduro de surpresa.

Em particular, causou sensação a demissão do ministro do Planeamento, Jorge Giordani, o principal responsável pela política económica da Venezuela das últimas décadas. Descrito como um “pensador económico socialista ortodoxo”, foi ele quem estabeleceu o sistema de controlos de preços e de câmbios que vigora no país – que o Governo de Maduro, confrontado com uma escassez de bens essenciais, uma taxa de inflação de 60% e uma desvalorização do bolívar no mercado negro, parece interessado em reformar.

Na hora da saída, Giordani divulgou uma carta acusatória da liderança de Nicolás Maduro, na qual ataca a “improvisação” e os “equívocos” do Presidente na condução política do Governo e lamenta o “vazio de liderança e de poder” na Venezuela. Numa primeira resposta a Giordani, o Presidente falou em traição e “punhalada nas costas” e exortou os líderes do chavismo a “definir” se estão com o Governo ou não.

Mas as suas palavras não tiveram o efeito desejado, com outros dois antigos ministros a manifestarem o seu acordo com as críticas do economista, e dois correligionários de Hugo Chávez no Exército a aventarem – pela primeira vez – a possibilidade da renúncia de Maduro à presidência. Atendendo à actual crise económica e de governabilidade, a manutenção de Maduro no cargo é “um sacrifício inútil”, consideraram os tenentes coronel Yoel Acosta e Carlos Guyón.

Os antigos responsáveis pelas pastas da Economia e da Educação e Energia, respectivamente Rafael Isea e Hector Navarro, fizeram distribuir uma outra carta em apoio do ministro demitido, lançando suspeitas sobre as motivações de Maduro. “Será que Giordani está a ser acusado de traição por ter denunciado a transferência de milhões de dólares para empresas fantasma e proposto medidas para impedir essa ocorrência?”, questionaram.

A iniciativa valeu a suspensão de Hector Navarro do conselho directivo do PSUV, com a instauração de um processo disciplinar. Uma medida que só veio acrescentar lenha na fogueira, motivando outros dois antigos ministros de Chávez (Victor Alvareze Ana Elisa Osório) a vir a terreiro defender o seu colega contra a “pura linha estalinista” que está a ser seguida no partido e no Governo.

Para a oposição, a troca de acusações e disputa interna são a “prova do nível de corrupção que existe no Governo”. “Agora chegamos ao ponto em que uma pessoa que peça transparência é logo reputada de traidora. Eles [Governo] não querem abrir investigações porque sabem que estão envolvidos”, criticou o governador do estado de Miranda e candidato presidencial, Henrique Capriles.

Num encontro com militantes do PSUV, em Aragua, para a preparação do congresso nacional do partido, Nicolás Maduro disse que as críticas construtivas ao desempenho do Governo são bem vindas, mas a “deslealdade e indisciplina” de antigos ministros que “querem destruir a revolução para justificar as suas falhas e erros” é intolerável. “Exijo a máxima lealdade dos líderes da revolução: não se brinca com a unidade do movimento revolucionário”, avisou.

O Presidente contou com o apoio do chefe da Assembleia Nacional, Diosdado Cabello, a figura número dois do regime e o líder da ala militarista do chavismo. “Tudo isto é uma tentativa de controlar o congresso do partido”, enquadrou, numa referência ao cisma político a que a imprensa internacional se refere como um duelo um duelo interno entre a linha ortodoxa e radical e a facção mais pragmática do chavismo. “A crítica é importante, mas será mais importante do que a humanidade, a aliança, a lealdade? Penso que não”, frisou Cabello, posicionando-se claramente no campo de Maduro contra a “velha guarda” de Chávez.

Para calar as críticas, o Presidente fez entretanto saber que está a preparar uma reformulação governamental: um novo executivo será apresentado na primeira metade de Julho, adiantou Maduro numa conversa com jornalistas. “Chegou o momento de virarmos a página e irmos mais além: vamos entrar numa nova fase de construção”, explicou. “É uma mudança difícil, mas não deixaremos de avaliar todos os mecanismos do Governo para que este possa tornar-se ainda mais eficiente”, acrescentou, confirmando que a nova configuração do executivo implicará alterações em todos os ministérios e, crucialmente, nas várias políticas do Governo.

Segundo The Wall Street Journal, as mexidas a que Maduro fez referência deverão passar pela adopção das ideias “inovadoras” defendidas pelo presidente da empresa petrolífera estatal PdVSA, Rafael Ramirez, e que entravam em choque com o dogmatismo de Jorge Giordani. Num encontro com investidores em Londres, Ramirez apontou a revisão do modelo monetário, com o estabelecimento de uma única taxa de câmbio para o dólar, como uma como uma “medida urgente” a considerar para facilitar as importações e promover o crescimento no país.

Foram principalmente as questões económicas que levaram os oficiais do Exército a divergir de Maduro e criticar as opções do Governo – embora o mal-estar dentro das Forças Armadas também tenha sido alimentado pelo Presidente, que amiúde se refere a tentativas de golpe de Estado pelos militares.

No presente cenário de calamidade económica, “a renúncia de Nicolás Maduro e dos seus ministros é inevitável”, consideraram Acosta e Guyón, que valendo-se das suas credenciais revolucionárias convocaram os seus camaradas de armas a “assumir a sua missão histórica de salvar a democracia”.

Numa entrevista à Globovisión esta semana, Freddy Bernal, que integrou as forças especiais da polícia e também acompanhou Hugo Chávez na intentona de 1992 que levou ao derrube do regime, não foi tão longe, mas deixou alguns conselhos ao Presidente. “Não era má ideia que os assessores económicos do Governo fossem economistas e não apenas chavistas. Por alguma razão não se soube gerir adequadamente as empresas expropriadas e que agora estão cheias de problemas”, lamentou.

Sugerir correcção
Comentar