Quando o telefone toca

Um filme “de argumentista” que se torna num filme “de actor”, com Tom Hardy a carregar sozinho a história de um homem na encruzilhada da sua vida.

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Se há coisa em que os ingleses continuam a dar cartas é na escola de argumentistas que sempre souberam criar, formados quase todos na televisão ou no teatro – se Peter Morgan (A Rainha, Frost/Nixon) tem sido o exemplo recente mais mediático, Steven Knight está-lhe no encalço, tendo assinado os excelentes Promessas Perigosas de David Cronenberg e Estranhos de Passagem de Stephen Frears.

Passado à realização com um veículo um pouco mais sério do que habitual para Jason Statham (Redenção), Knight assina com Locke um objecto mais ambicioso, que concilia de modo feliz uma narrativa forte e bem montada com uma experiência formal intrigante: uma história contada quase em tempo real durante uma viagem de automóvel em que a câmara nunca sai do carro, com um único actor constantemente no écrã (podia ser, mas não é, um primo afastado do Radio On de Christopher Petit). É um tour de force que Knight colocou nos ombros do actor certo: Tom Hardy, um verdadeiro “camaleão” que vimos em filmes de Christopher Nolan, John Hillcoat ou Nicolas Winding Refn, e um dos grandes actores ingleses do momento. Hardy traz a entrega, a determinação e a vulnerabilidade necessárias a esta história de um homem na encruzilhada central da sua vida, um engenheiro de cofragens que decide assumir o erro que cometeu meses antes mesmo que isso coloque em risco o seu casamento e o seu emprego.

Fechado com Ivan Locke no interior de um carro com o telefone em alta-voz como única “ligação” ao mundo exterior, e com as chamadas que vai fazendo e recebendo desvendando aos poucos o olho do furacão em que este homem normal se encontra, o espectador deixa-se envolver pelo engenho com que Knight constrói gradualmente a densidade da sua história. É uma espécie de pas de deux entre o actor e o argumentista/realizador, em que Tom Hardy está lá para servir a história que Knight escreveu, mas em que Knight enquanto realizador está lá apenas para servir o actor; um filme que começa por ser “de argumentista” para se tornar “de actor”, com uma daquelas interpretações que, antigamente, fariam uma carreira. Não se deve escamotear que, às tantas, Locke parece começar a andar em círculos, como se Knight já não soubesse o que mais fazer para sustentar o seu dispositivo, e que visualmente é mais funcional do que verdadeiramente inspirado (a música de Dickon Hinchliffe, dos Tindersticks, por uma vez joga contra). Mas é um filme que assume abertamente a sua vontade de fazer algo de diferente e inteligente para um espectador adulto e interessado, coisa que hoje em dia se vê pouco e faz falta. E tem um actor de excepção que, só por si, mais do que justifica o preço do bilhete.

 

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