O Filho de Deus

As dez horas da série televisiva A Bíblia comprimidas em duas horas e picos. É difícil imaginar que isto alguma vez tenha sido bom, mas assim em versão digest (quem nem por isso deixa de parecer longuíssima) é uma penitência que só se aguenta em nome dos mais inconfessáveis pecados de cada um. Sem sentido de estrutura ou de dramaturgia, limita-se a atirar umas figuras para a paisagem e a ilustrar uma espécie de greatest hits da Bíblia, saltando de episódio célebre em episódio célebre, sempre sem contexto, sem olhar, sem construção. Sem crítica, também, no sentido em que não propõe nenhum pensamento sobre as personagens e as histórias, tal como remove cuidadosamente o pensamento de Jesus Cristo, reduzido ao estereotipo do milagreiro espectacular. O cinema filma esta história desde os primórdios, e de DeMille a Mel Gibson, de Oliveira a Zeffirelli, a vida de Cristo já serviu para muita obra-prima e para muito pastelão. O Filho de Deus é tão mau que põe tudo numa perspectiva nova: ao pé dele, até Gibson é parecido com DeMille, até Zeffirelli é parecido com Oliveira - pois ao menos tinham alguma ideia, minimamente pessoal, sobre o que estavam a filmar. Uma ideia estética, no limite. É finalmente o que mais impressiona neste Filho de Deus que não passa de um tristíssimo enteado dos deuses cinematográficos: a sua completa cegueira aos dois mil anos de trabalho que a arte ocidental leva sobre a representação destas figuras e destas histórias. Apenas uma inóspita fealdade, o nulo total, caso para dizer, com propriedade, que eles não sabem o que fazem.

Sugerir correcção
Comentar