A rapariga da bicicleta

A aprendizagem de uma encruzilhada, que está no osso poético de O Sonho de Wadjda, faz-se com a delicadeza suficiente para gerar a maior simpatia

Vem com a auréola de ser o primeiro filme inteiramente realizado na Arábia Saudita e logo por uma mulher, Haifaa Al-Mansour, assim conciliando duas coisas - o cinema e o sexo feminino - que aquele país não tem o hábito de promover. Em rigor, não é um filme estritamente saudita, sendo apresentado como uma co-produção com a Alemanha (mas o genérico sugere que há dinheiro ainda de outros países da região, como o Dubai, um dos Emiratos). O que também não impede que a principal curiosidade do filme seja mesmo essa espreitadela a um país tão pouco visto em cinema, os seus retratos e as suas imagens do quotidiano familiar, do quotidiano escolar, e sobretudo do quotidiano da rua - e são mesmo essas, as cenas de rua, as melhores do filme, onde se sente pulsar qualquer coisa que não se finge, e se sentar estar a ver qualquer coisa que nunca se viu bem assim.


Feito na Arábia Saudita por uma mulher, O Sonho de Wadjda de algum modo funde essa circunstância no seu tema: a condição feminina num país em que sobre as mulheres recai um sem-número de restrições, religiosas ou simplesmente justificadas através da religião. Mas sobre esse aspecto o filme não traz nada de verdadeiramente revelador, confirmando apenas a imaginação comum sobre o lugar e o estatuto das mulheres num país wahabita, numa ilustração suave e, a bem dizer, pouco drástica, sem histeria nem dedos espetados, ainda que dê aos islamófobos da praça (para quem um filme como este é um autêntico sonho molhado) bastos motivos para espetarem eles os dedos. Quase forçosamente bastante naif, com uma linguagem cinematográfica “standardizada”, muito “internacional” e sem um grama de especificidade (nada a ver, por exemplo, com a força dos filmes iranianos, que de resto têm uma escola e uma tradição incomparavelmente mais vastas do que os filmes sauditas), há ainda assim por parte de Haifaa Al-Mansour alguma habilidade, alguma sensibilidade, que justificam o visionamento do filme para além do seu “exotismo”. E que se revelam, sobretudo, no seu tratamento da miúda protagonista (que quer ganhar um concurso escolar de récitas do Corão para comprar uma coisa que, em nome do Corão, os adultos não querem que ela compre - uma bicicleta), na espécie de naturalidade com que ela se relaciona com o “proibido” (a música, por exemplo), e capaz de exprimir, de maneira quase “muda”, sem sublinhados, um conflito interior entre termos que ela não é ainda capaz de nomear: o conformismo e a rebeldia. A aprendizagem dessa encruzilhada, que está no osso dramático (ou, se quiserem, poético) de O Sonho de Wadjda, faz-se com uma inocência que nunca parece falsificada, e com a delicadeza suficiente para gerar, da nossa parte, a maior simpatia.

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