Um homem para a eternidade

Apesar dos seus desequilíbrios e debilidades, é um filme capaz de dar um retrato de Mandela que se diria justo.

Se alguém hoje merecia um John Ford capaz de lhe fazer um monumento em forma de filme, essa pessoa era Nelson Mandela. Teve Clint Eastwood, uma das melhores opções à falta de um Ford, mas “Invictus” nada tinha de um “Young Mr. Mandela”. Muito menos tem “Mandela: Longo Caminho para a Liberdade”, embora nele se veja, de facto, o jovem Sr. Mandela. Cai no momento certo, ainda mal esbatida que está a comoção pela morte do líder sul-africano (e a estreia portuguesa chegou a estar anunciada para o dia 5 de Dezembro, que veio a ser o da morte de Mandela), e este “timing”, tão propenso a uma função de homilia, não deixará de ajudar na sua recepção. Dizer que é um bom filme, no entanto, é um exagero, que nem a simpatia pelo seu imenso protagonista ou a profunda aversão pelo aberrante regime sul-africano que ele combateu justificam. Realizado pelo anódino inglês Justin Chadwick (vagamente conhecido em Portugal por “Duas Irmãs, um Rei”, que juntava Scarlett Johansson e Natalie Portman), tem argumento trabalhado a partir da autobiografia de Mandela, sofre pelo excesso de indistinção estilística e sofre pela acumulação ilustrativa, com pouco sentido da economia narrativa - como é frequente nos “biopics” que têm muita coisa para contar, demasiadas cenas resultam demasiado rápidas, mal exploradas, sem corpo, enquanto outras nem justificam a sua utilidade dramática (precisávamos mesmo de ver as cenas de cama de Mandela com as suas duas primeiras mulheres, Evelyn e Winnie?...). A primeira parte do filme, que conta a juventude de Mandela até ao momento da sua prisão em inícios da década de 60, sofre bastante com isso, com a narrativa apressada, fragmentos de cenas em vez de cenas com uma respiração que se apreenda, e muitos clichés visuais (ralentis e contraluzes).

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Melhora um bocadinho a partir da prisão. Porque aí a história de Mandela como que “pára” (durante 27 anos), e o filme tem que parar também. É o momento em que tudo começa a parecer mais pensado, acompanhando a tomada de consciência do protagonista de que a sua função agora, enfiado entre quatro paredes, é tornar-se um símbolo e estar à altura do estatuto simbólico. E é o momento no filme em que Mandela começa a aparecer como personagem de cinema, como entidade dramaturgicamente construída. Neste passo vale a pena frisar o seu intérprete, Idris Elba, que facilmente diríamos ser o principal atributo do filme: é notável a maneira como, muito para além da maquilhagem, dá a transformação física da personagem (a progressiva lentidão do seu ritmo e do seus gestos, o que obviamente não significa, nem significou, menor firmeza ou obstinação). E perto do final, quando já estamos nas vésperas da libertação de Mandela, vem o único breve instante em que, da parte de Chadwick, há mise en scène significativa: a reunião do protagonista com políticos e militares sul-africanos, em que a disposição e evolução da cena mostram, sem palavras, o que a partir desse momento era óbvio - que o poder já estava nas mãos de Mandela, mesmo que ele ainda estivesse preso.

Tudo somado, e apesar dos seus desequilíbrios e debilidades, é um filme capaz de dar um retrato de Mandela que se diria justo. Não o “santo” nem o “pacifista” que ele não foi nem quis ser mas por alguma razão as pessoas gostavam que ele tivesse sido, antes o homem político complexo, determinado e espertíssimo que esteve do único lado claramente certo da História recente.

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