Apocalipse pop

Um olhar não demasiado severo sobre a celeb culture e o seu efeito de esvaziamento sobre outra “juventude inquieta”, aquela que Sofia Coppola tem à mão.

A fama pode “conduzir-te ao crime”, dizia uma canção de David Bowie nos anos 70, já depois de Andy Warhol ter previsto, e à sua maneira provado, que qualquer valdevinos podia ser famoso, por uma questão de democracia e direitos elementares. O fascínio pela “fama” e pelos “famosos”, parte integrante, ou mesmo central, da cultura popular contemporânea (e bem longe estamos do tempo em que a fama se pagava “em suor”, como se dizia numa série americana dos anos 80...), é o objecto nº1 do filme de Sofia Coppola. Ela que, por ser filha de quem é, terá sofrido, mas também eventualmente gozado alguma coisa, com aquela fama instantânea que a certas pessoas advém do simples facto de serem quem são.


E, de facto, há “condução para o crime”. O argumento, baseado numa reportagem da Vanity Fair, centra-se num grupo de miúdos, passado à História, ou só à fama, como o bling ring (título original do filme, mais preciso do que o português, como se em Hollywood só houvesse um gangue...), que se entretinha a invadir e a roubar as casas temporariamente vazias das maiores celebridades do momento, de Paris Hilton a Orlando Bloom. A dado passo foram apanhados, muito por culpa do Facebook (como é evidente, toda a noção de privacidade, própria ou alheia, é-lhes estranha). Momento amargo mas não isento de compensação, porque se crime não compensa directamente, também ele conduz à fama, e da fama vem o proveito.

Trabalhando este caso preciso, em reconstituição ou em suposição, Sofia ensaia, sem demasiada severidade, um olhar sobre este pequeno-grande apocalipse pop que é a celeb culture, e o seu efeito de esvaziamento das mentes adolescentes. Sem demasiada severidade porque, se a caracterização das personagens é devastadora (não têm nada na cabeça nem nenhum outro interesse para além de marcas e nomes de vedetas), Sofia escolhe enquadrá-las numa espécie de solidão (aquela solidão “privilegiada” que era a de Maria Antonieta e doutros filmes da realizadora), criada também por demissão dos adultos (a única adulta com destaque na narrativa, a mãe de uma das miúdas do ring, é uma perfeita tolinha). Daí que, como noutros filmes dela, as personagens e a história existam numa aura mais ou menos irreal, como que onírica, tornada evidente naqueles pequenos momentos em que a “acção” se suspende (e, via ralenti, o tempo desacelera), e ficam só a música, a dança, os gestos dos miúdos. São os “marginais”, a “juventude inquieta”, que Sofia tem à mão, razão suficiente para que os filme sem demasiada proximidade (e sem nunca querer entrar dentro da sua psicologia, como acontecia nos Springbreakers de Harmony Korine, o filme recente que melhor emparelha com O Gangue de Hollywood) mas também sem adoptar o ponto de vista de um zoólogo a observar desapaixonadamente espécimes raros.

Equilíbrio dramático que é uma virtude, mas que também rouba ao filme a perspectiva cortante e a ironia para que por vezes parece apontar, mas que nunca abocanha. Ficam, sobretudo a ironia, para algumas cenas de trespassing propriamente dito (um belo plano geral sobre uma vivenda “transparente”, por exemplo), onde as casas vazias temporariamente ocupadas pelo “gangue” funcionam em simultâneo como descrição factual e sua própria metáfora: eis um grupo de miúdos a habitar o vazio, livre de qualquer presença humana, onde tudo se resume a sinais e vestígios (jóias, sapatos e roupa de marca) de uma civilização em nada desaparecida - a idade do espectáculo, versão século XXI, sempre oca, sempre on-line.

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