De perder a razão

Um filme desafectado, quase cruel, cujo triunfo repousa sobre os ombros de uma actriz: Emilie Dequenne.

Salvo qualquer erro, o mais célebre caso de quíntuplo infanticídio é o de Magda Goebbels, que Oliver Hirschbiegel não resistiu a ilustrar no seu filme ("A Queda") sobre os últimos dias do bunker de Hitler em Berlim. "Os Nossos Filhos", do belga Joachim Lafosse, colhe inspiração num caso menos célebre e mais recente, sucedido em 2007 na Bélgica (país que parece rivalizar com a Áustria em manifestações de um horror doméstico, entre quatro paredes), quando uma mulher de Nivelles estrangulou os seus cinco filhos pequenos.


Muito duro, evidentemente, mas feito com tacto e uma certa delicadeza: ao contrário do filme de Hirschbiegel nem se chega a ver uma só criança morta, resolvendo-se tudo entre um plano, logo no início, com um conjunto de caixõezinhos brancos a serem içados para dentro de um avião, e no final (pois a história surge em flashback) recorrendo a um uso pudico e inteligente do fora de campo.

Dando o desfecho logo ao princípio, e tratando de um acontecimento verídico, obviamente que o que interessa a Lafosse não é a reconstituição mas a pressuposição: imaginar o caminho seguido, na vida e na cabeça daquela mulher, até esse fatal momento “de perder a razão” (que é o título original do filme, À Perdre la Raison). Mas ainda assim, e mesmo se o filme, nas suas peripécias, propõe justificações narrativas para o desespero (a influência sufocante do “mentor” do marido sobre aquela relação e sobre aquela família), tem a sagacidade necessária para não fazer disso um A + B, uma linear relação de causa e efeito. A corrosão mental permanece inexplicável, emoldurada por um olhar sobre a “domesticidade” enquanto “opressão”, materializada pelo estilo “fechado” do filme, também quase sempre entre quatro paredes, mais personagens do que espaço, como um círculo que se aperta e se transforma em cerco. Há um pouco dos Dardenne nesta maneira de filmar, bem como neste olhar sobre a psicologia de onde se evacua, justamente, qualquer tradução literal para a psicologia - reinam a observação, o empirismo, de modo desafectado e quase cruel.

A protagonista, Emilie Dequenne, está à vontade neste registo: ela foi, há coisa de 15 anos, a jovem Rosetta do filme homónimo dos Dardenne. É sobre ela que repousa o triunfo ou o fracasso de Os Nossos Filhos. Quando chega aquele longo plano em que, de perfil, o seu rosto se desfaz ao som duma canção ouvida no auto-rádio, desfaz-se também a dúvida: Emilie triunfará, e com ela o filme.

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