Feitiço do império

Regressado em cópia restaurada aos 50 anos de idade, o filme de David Lean revela por trás do seu classicismo formal uma surpreendente modernidade temática.

Há qualquer coisa de mágico em regressar a um filme que ganhou com o tempo uma conotação de clássico intocável, sem segredos, e descobrir nele um outro filme. É o caso de Lawrence da Arábia, que por trás de um classicismo formal rigoroso, muito “britânico”, revela as ambições e limites da grande aventura colonial do Império Britânico: um filme que se desenha num mesmo movimento como romance e crítica do heroísmo e da sua propaganda. Ou, por outras palavras, usar um épico como medida da aventura interior de T. E. Lawrence, súbdito de Sua Majestade Britânica, filho bastardo de um aristocrata, que navega à vista entre a estrutura rígida e imutável do exército britânico e a liberdade absoluta que encontra no deserto e nas tribos beduínas que o dominam.


Não é tanto uma biografia, sequer uma hagiografia. É, antes, um retrato de um homem (magnífico Peter O''Toole, no fio perfeito da navalha entre a sedução e a dúvida), perdido entre dois mundos, num limbo que o impede de pertencer a qualquer deles. Mas também de um herói acidental, cujo arrojo saído dos romances de aventuras adolescentes o acaba por tornar num títere, manipulado de todos os lados para efeitos políticos enquanto acredita estar a pugnar subversivamente pelos direitos do povo árabe. Lawrence da Arábia é a história da sua ascensão e queda, da sua tentativa de deixar para trás as limitações da gloriosa Albion para se ver prisioneiro da ilusão conveniente em que acabou por fazer o papel de um idealista/idiota útil. Não sem ironia, Lean e os seus argumentistas (Robert Bolt e Michael Wilson) exploram como a dimensão da aventura imperial não passa de uma fantasia que se desintegra em contacto com a realidade, como se a grandiosidade dos meios reunidos (a começar pela fotografia sublime de F. A. Young, extraordinariamente recuperada neste restauro digital 4K) escondesse uma meditação surpreendentemente desencantada sobre o preço que a Grande História cobra à pequena história com a qual se cruza. E, parecendo que não, as quase quatro horas de duração são centrais para revelar como um homem, qualquer que ele seja, é sempre maior e mais complexo do que aparenta ser. É essa dimensão intimista, esse olhar sobre um homem que percebe tarde demais a responsabilidade do heroísmo, que transforma Lawrence da Arábia num expansivo épico moral de câmara sobre o poder das ilusões.

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