A última tourada em Sevilha

Pablo Berger faz do velho conto de fadas dos irmãos Grimm um olhar crítico para uma Espanha atávica e mítica, num filme mudo a preto e branco que nada tem de anacrónico.

Filme mudo a preto e branco? A primeira impressão é que "Branca de Neve" vem na esteira de "O Artista", a homenagem ao cinema mudo de Michel Hazanavicius que venceu o Óscar de Melhor Filme em 2012. Nada de mais errado: trata-se de um projecto que estava em produção quando "O Artista" começou a sua carreira fulgurante. E convirá não esperar desta leitura peculiar do velho conto de fadas dos irmãos Grimm uma carta de amor ao cinema de Hollywood como o era "O Artista" (mesmo que seja aqui inevitável reconhecer influências da era de ouro do cinema americano).


Estamos mais perto da homenagem sentida de um Aki Kaurismäki quando experimentou a forma, da crença (diríamos mesmo da fé) na simplicidade quase radical do melodrama clássico, mais do que dos surrealismos e das sátiras Buñuelianas a que alguns o têm comparado (ainda que, a espaços, se perceba a referência).

Paradoxalmente, é mais do lado dos filmes melancólicos de Guillermo del Toro sobre o passado espanhol, "Nas Costas do Diabo" e "O Labirinto do Fauno", que devemos procurar as raízes desta "Branca de Neve" que trabalha o orgulhoso atavismo fatalista castelhano, transpondo engenhosamente a história para a Sevilha dos anos 1920.

E, ao ambientá-lo numa Espanha mítica de sol e touros, orgulho e honra, religião e tradição, a passagem a filme mudo, onde são as imagens que transportam uma narrativa que tira a sua força da convenção, ganha todo o sentido.

Branca de Neve é Carmen, filha de uma cantaora de flamenco que morreu a dá-la à luz e de um toureiro que fica paraplégico após uma colhida; a madrasta que a maltrata é uma enfermeira arrivista com os olhos no dinheiro do toureiro; os sete anões são os Sete Anões Toureiros, um grupo de saltimbancos que acolhe a adolescente, agora amnésica, depois da sua fuga, e que revela os insuspeitos talentos tauromáquicos da jovem.

O que resulta daqui é um lamento em tom simultanemente elegíaco e crítico por uma Espanha mítica presa nos seus próprios labirintos, que se esquiva à lógica moralista do conto de fadas e prefere reflectir sobre uma identidade nacional de um modo que a própria justeza da transposição em filme mudo apenas sublinha. Não surpreendem, por isso, os dez prémios Goya que Branca de Neve recebeu há poucas semanas, numa cerimónia marcada pela indignação da comunidade artística perante a actual crise em Espanha: a intemporalidade é a marca deste filme que não tem nada de anacrónico.

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