O teatro e a vida

Um dispositivo engenhoso não evita que a nova versão de Anna Karenina fique aquém das pistas que abre.

Se uma das forças do cinema britânico sempre foi a reconstituição de época, isso deve-se à centralidade das classes sociais enquanto conflito gerador de acção em muita da criação literária e teatral britânica. Esta adaptação da imortal Anna Karenina de Tolstoi pelo dramaturgo Tom Stoppard e pelo realizador Joe Wright sublinha as questões sociais da obra de modo engenhoso e espectacular. Anna, a esposa fiel de São Petersburgo, vê a sua paixão pelo garboso oficial Vronsky espartilhada pelas convenções sociais da Rússia imperial em que se move, dando o mote para os dilemas de um grupo de personagens apanhadas no limbo entre o dever e o desejo.

Para esse efeito, Stoppard e Wright conceberam um dispositivo cenográfico ambientado num teatro do século XIX, cenário único e polivalente que se transforma de repartição em restaurante, de rua moscovita em palácio rural. A metáfora não é original - a sociedade como teatro onde cada um tem um papel a cumprir, com os escassos exteriores representando a liberdade que os homens (legisladores, maridos, pais) ainda vão conseguindo impor - mas é eficazmente traduzida em cinema, sobretudo através da fluidez coreográfica com que tudo decorre. Já sabíamos do gosto de Wright por panorâmicas vistosas, a natureza de estúdio do projecto permite-lhe levar esse gosto a um limite, com a câmara a ser tão virtuosa como as danças estilizadas que pontuam o filme. Se, no entanto, o dispositivo não trai o espírito nem a multi-dimensionalidade de Tolstoi, corre o risco de tombar no decorativismo e introduz um distanciamento que exige uma entrega total do actor para injectar a humanidade que a cenografia por si só não consegue. E é aí que Anna Karenina se perde - não porque os actores sejam maus, mas porque Keira Knightley e Aaron Taylor-Johnson são erros de casting, sem conseguir emprestar a Anna e Vronsky a experiência nem a gravidade que os papéis exigem, e o Karenin melancólico de Jude Law ou o Levin na mouche de Domhnall Gleeson não chegam para compensar. É, então, pena que seja ao deslumbrante decorativismo da produção visual que Anna Karenina se resuma, sem que as portas intrigantes que abre sejam inteiramente exploradas.

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