Do ascetismo surf

É um filme extremamente físico, que anseia pelo momento em que o físico se converta em metafísico.

Deste Lado da Ressurreição parece, a priori, um título abstracto; mas depois de se ver o filme percebe-se que ele afinal é muito mais descritivo do que parece, e que esta terceira ficção longa de Joaquim Sapinho (depois de Corte de Cabelo e de A Mulher Polícia) persegue obsessivamente uma maneira de tornar palpável, sensível, esta expressão - ou este lugar, “deste lado da ressurreição”. Dito de maneira simplista, é um filme extremamente físico, que anseia pelo momento em que o físico se converta em metafísico. É o movimento do filme, é o movimento das suas personagens, em especial do seu protagonista, entre as ondas do surf e as celas do convento. Mas é um filme que sabe - talvez ao contrário das suas personagens - que não há maneira de passar para o lado de lá, pelo menos não antes da “ressurreição”. Resta-lhe, portanto, filmar uma parede, bater contra ela, vezes e vezes: a parede onde a câmara se fixa no fim da sequência introdutória; vezes e vezes como os açoites auto-infligidos durante uma mortificação ritual. Bater contra a parede, tentar escavacá-la, como se fosse tudo o que se pudesse fazer.


Há uma “história” em Deste Lado da Ressurreição, uma história ao mesmo tempo muito fina e muito grave, dois irmãos distantes unidos (ou separados) por um mistério relacionado com o pai desaparecido, um “não-dito” que oscila entre ser pretexto dramático e ser, ele próprio, um elemento do drama (um encontro com um amigo do pai, por exemplo). Mas assim como esta história gravita em torno da aproximação e fuga entre os irmãos (o rapaz surfista, a miúda liceal), todo o filme trabalha na criação de movimentos de aproximação e fuga, de rimas e de oposições. O mar e a serra, o Guincho e o convento, ligados por um fio misterioso (que, dir-se-ia, se torna visível em certos planos), talvez o mesmo fio que mantém em contacto os quatro elementos - o mar e a terra, o ar (o céu estival e encarniçado) e o fogo (das velas que iluminam a escuridão do convento) - que, duma maneira muito básica (no sentido “elementar” do termo), tanto delimitam o filme, como se fossem as margens do seu “enquadramento”, como lhe habitam o centro e se tornam o seu coração. De resto, apetece dizer que, nesta espécie de “clareza” muito material, Deste Lado da Ressurreição responde - também em “fuga” - à bruma memorial e etérea que marcava o precedente filme de Sapinho, Diários da Bósnia. E ainda que, nesse regresso ao “básico”, talvez seja o filme do realizador que mais recua a um tempo até pré-Corte de Cabelo (como se fosse outro “corte”), voltando a pegar no que Sapinho deixara depositado no seu absoluto primeiro filme, À Beira-Mar, curta-metragem feita, nos anos 80, no contexto da Escola de Cinema. Sendo, de resto, e também por isso, razoavelmente evidente a que ponto Deste Lado da Ressurreição se relaciona com essa “escola de 80” (em todos os sentidos, próprios e figurados) e com a “geração”, ou “gerações”, que dela saíram. Pensamos, por exemplo, que nessa já referida sequência introdutória - montagem de planos curtos, sobre a natureza, figuras religiosas, paredes - a utilização do som, se não em pura dissociação pelo menos em clara assunção da banda de som como “outra coisa”, mais arbitrária do que necessariamente colada à banda de imagem, há qualquer coisa de António Reis (vem-nos à memória, por alguma razão, a entrada do som em “Jaime”).

O som, de resto, e também em termos de “aproximação e fuga” na relação com a imagem, é um aspecto notabilíssimo de Deste Lado da Ressurreição. É um filme em “falso silêncio”, cheio de rumores, cheio de sons que se arrastam (e que são também o som do “arrasto”, o som do atrito - da prancha contra as ondas, por exemplo), como que transportados de um sítio para o outro - ou o que vai dar ao mesmo, que criam a sensação psicológica desse transporte, duma permanência que vai muito para além de uma questão de “som ambiente”. Um som de desgaste, também: seja no mar, seja nos zumbidos do convento, há ali a expressão de uma “energia” a soltar-se das personagens, como que num processo de depuração, de despojamento - até ficar, como na cena da mortificação, o ruído que o rapaz faz sobre o próprio corpo.

Sem ser o típico “filme de surf”, e também sem ser o típico “filme de monges” (ou, já agora, o típico “filme de liceu”), Deste Lado da Ressurreição aproxima-se de todos com a curiosidade de quem está a inventar uma “antropologia” muito particular. Há um lado “tribal” - os surfistas, os monges, os estudantes - que o filme observa com admiração e espanto, a partir dos códigos (e cenários) que definem cada “tribo” mas também pela maneira através dos quais elas “comunicam”. Esse é, também, um “outro lado”, subterrâneo (ou subaquático...), uma espécie de “túnel” (como o de Corte de Cabelo), metáfora não totalmente desapropriada aos espaços do convento, e totalmente adequada ao grande mistério do filme: o que aproxima o que está separado, sejam as pessoas, sejam a banda de som e a banda de imagem, sejam os dois lados - este e o outro - da ressurreição?

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