O poder da imagem

Um documentário fascinante sobre o poder da imagem e a essência do cinema que não se esgota na sua breve duração

Ponto prévio: para desfrutar de Linha Vermelha, ajuda muito ter uma memória do filme de Thomas Harlan Torre Bela (que passou há alguns anos pelas salas), sobre o qual o documentário de José Filipe Costa, vencedor do concurso nacional do IndieLisboa 2011, se debruça em profundidade. Mas não é obrigatório, porque Linha Vermelha explica o suficiente sobre Torre Bela, filme que para o bem e para o mal marcou a imagem pública e histórica do 25 de Abril como nenhum outro, para informar um espectador menos especialista, e o dever de memória de Costa torna-se rapidamente numa apaixonante viagem ao passado, entre o documentário de bastidores e o filme-ensaio. Linha Vermelha interroga a nossa história recente, o poder da imagem, a própria essência do documentário, e ao fazê-lo ombreia sem problemas com algumas das obras documentais mais notáveis que temos visto, quer no DocLisboa quer mais a espaço em salas.


Linha Vermelha é uma espécie de investigação policial à volta do registo da ocupação da herdade da Torre Bela filmada em 1975 pelo alemão Thomas Harlan. É também uma verdadeira master class sobre o processo de criação de um filme, seguindo o modo como um cineasta diletante e militante usa os materiais fílmicos ao seu dispor, manipulando tempo e espaço para criar uma imagem e fazer passar uma mensagem. De certo modo, Linha Vermelha revela Torre Bela como um filme Eisensteiniano, um Couraçado Potemkin à nossa escala onde as imagens são alinhadas para construir um efeito dramático - a criação de um herói em Wilson Filipe; o confronto entre a miséria e o luxo na entrada dos ocupantes na mansão que é ainda hoje a cena mais recordada do filme; a aprendizagem do socialismo no célebre diálogo das botas. Sempre arrumámos Torre Bela na gaveta do documentário, mas ao revelar que algumas das situações foram recriadas frente à câmara, Costa recorda-nos que qualquer cinéma só aparentemente é vérité, porque assim que há uma câmara há um ponto de vista, e assim que há um montador há uma progressão narrativa. Neste caso, isso é amplificado por um realizador onde é impossível não ver a procura de resgate de um nome de família manchado - onde o pai Veit Harlan fora o cineasta do regime nazi, o filho Thomas acabaria por se tornar no cineasta da revolução dos Cravos, colocando a sua câmara ao serviço de uma causa.

É, por isso, do poder da imagem que Linha Vermelha nos fala, e não é certamente por acaso que seja o som - na forma das declarações de um Thomas Harlan que, já muito doente, nunca aparece na imagem; das velhas bobines de som que são os únicos restos dos bastidores de Torre Bela e que lançam questões sobre a sua criação; do ruído das moviolas e mesas de montagem por onde a película corre - que vem desvendar os segredos da imagem. Linha Vermelha não se esgota na sua curta duração e lança inúmeras pistas sobre a natureza do cinema e das imagens: é um filme essencial para compreender o modo como a imagem molda o nosso quotidiano.

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