A mulher que odeia os homens

David Fincher adapta o primeiro dos três romances de Stieg Larsson: é mais cinema que a versão sueca, mas falta-lhe Noomi Rapace

Havia, genuinamente, necessidade de voltar a adaptar ao cinema os romances da trilogia “Millennium” de Stieg Larsson, dois anos apenas após a produção de uma versão escandinava (feita originalmente a pensar na televisão, é verdade, mas estreada em sala)? Digamos que, para lá da tradicional fuçanguice autista dos estúdios americanos e da sua alergia a tudo o que seja falado noutras línguas que não o inglês, havia espaço para se fazer melhor. Os três filmes suecos não passavam de peças funcionais à medida de uma “soirée” televisiva meio distraída, com um ponto grande a favor na presença de Noomi Rapace, que encarnava a heroína gótico-psicótica Lisbeth Salander como se nunca tivesse feito outra coisa na vida.


E faz todo o sentido que seja David Fincher a assumir as rédeas desta “remake”, ou não fossem Lisbeth e o jornalista Mikael Blomqvist, heróis falíveis e fortes, obsessivos e trágicos, à medida das personagens principais da sua filmografia. Não deve, igualmente, ser mera coincidência que os crimes desvendados pela “hacker” asocial e pelo jornalista desacreditado enquanto investigam o passado de uma rica família industrial sueca transportem longínquos ecos de dois dos filmes-chave do realizador americano: “Sete Pecados Mortais” e “Zodiac”.

Nas mãos de Fincher e do argumentista Steven Zaillian, assim, o primeiro dos três romances de Larsson ganha uma fluidez e uma inquietação envolventes, confirmando o cineasta americano como mestre do enquadramento atmosférico. O que “Os Homens que Odeiam as Mulheres” tem que o original de Niels Arden Oplev não tinha é a sensação de pântano traiçoeiro de uma sociedade que esconde uma tonelada de esqueletos no armário por trás da sua aparência de funcionalismo-IKEA. É um filme mais duro, mais impiedoso, que lança igualmente um olhar perturbante sobre uma sociedade da informação onde os segredos o são cada vez menos ou por um menor espaço de tempo.

Mas perde-se onde, ironicamente, mais importava ganhar - na Lisbeth de Rooney Mara, mais autista e menos humana que a de Noomi Rapace. É uma criação de uma nota só, que nunca penetra realmente até ao núcleo da personagem, tanto mais quanto Daniel Craig é uma excelente opção para a personagem de Blomqvist e o restante elenco consegue fazer milagres com apenas duas ou três cenas (Steven Berkoff e Joely Richardson são extraordinários). O resultado desvia o centro de gravidade de Lisbeth para Blomqvist, com Fincher a subalternizar o mistério policial no centro da trama, reduzindo-o a um simples pretexto para um exercício de estilo virtuoso na construção de uma atmosfera inquietante de corrupção profunda, à medida de um realizador perfeccionista. É um filme eficaz e intrigante, cerebral q. b., mas ao qual falta aquele “rasgo” que o elevasse acima do mero funcionalismo de luxo.

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