A faca na sala de estar

Um retrato, uma caricatura, da América que, com razão ou sem ela, persegue Polanski há trinta e tal anos...

Eis Polanski de regresso a um dos seus palcos preferidos: o reduto doméstico, a sala de estar, metafórica ou, como é o caso, absolutamente literal. Os exemplos disto, e da conversão de um espaço doméstico em lugar de estranheza e agressão, abundam na sua filmografia e podem ser citados quase ao acaso, porque vai-se lá dar frequentemente - “A Faca na Água”, “Repulsa”, “Death and the Maiden”... O paroxismo é, obviamente, “O Pianista”, história do gueto de Varsóvia, ou de como a selvajaria se instala num lugar familiar, explicitação do trauma fundamental da obra de Polanski, o trauma de uma criança polaca que tinha seis anos em 1939. (E depois, porque Polanski tem um íman a ligar a vida e os filmes, há o que Manson foi fazer a Sharon Tate, em plena sala de estar do casal Polanski...).


Mas bom, nada de tão dramático em “O Deus da Carnificina”, pelo menos aparentemente. Dois casais novaiorquinos que se reúnem em casa de um deles, para discutirem, muito civilizadamente, uma história que envolveu os filhos pequenos de ambos. O verniz estala, evidentemente, a “civilização” desaparece à medida que os impulsos tomam conta da situação, os impulsos irracionais mas também os racionais (e mesmo ideológicos, sobretudo no caso da personagem de Jodie Foster, paladina de um politicamente correcto de ressonância muito contemporânea), transformados na mesma coisa, na mesma medida de cegueira e frustrações. A sala de estar como palco de um jogo de massacre (“Carnage” é o título original, e o argumento vem de uma peça de teatro de Yasmina Reza), duelo verbal onde a violência se converte em palavras, e onde as palavras são o agente de todos os abusos - até fazerem aparecer outro velho fantasma polanskiano cheio de repercussões: a violação. Conte-se as vezes em que a personagem de Foster (a dona da casa) é, digamos, “violada”, metaforicamente e verbalmente violada.Face à riqueza dos diálogos, e a um grupo de actores impecáveis (Foster, John C. Reilly, Kate Winslet, Christoph Walz), é pena que Polanski, no que toca à “mise-en-scène”, tenha sido tão... confortável. A “découpage” é bastante frouxa, nunca tirando partido da continuidade espácio-temporal da narrativa. Tem-se citado “A Corda” de Hitchcock e faz sentido que se o cite, mas é evidente que Polanski faz o contrário de Hitchcock: “parte” a temporalidade, em vez de lhe dar a consistência física do plano longo, do plano embebido pela tensão da sua própria “durée”. Por outro lado, procedendo assim Polanski como que impede que o espectador se “transporte” para dentro daquela sala, e isso corresponde a um olhar que será, da parte dele, intencional: o filme aprisiona as suas quatro personagens mas nunca está com nenhuma delas, nem como indivíduos nem como grupo, há uma distância, uma distância “escarninha”, em relação a todas elas, à medida que os dois casais se desfazem e recompõem ao sabor de outras afinidades (por exemplo, a espécie de “lealdade” masculina que acaba por aproximar os dois maridos). Polanski não está com nenhuma delas, filma-lhes as ideias e as conversas como se fossem espasmos, ou vómitos (e vómitos, literalmente falando, também há no filme), faz das quatro personagens quatro protótipos, do idealismo de Foster ao “tecnologismo” de Walz (tão “réptil” como no filme de Tarantino), que compõem um retrato das “sensibilidades” que dominam - ou parecem dominar, vistas de longe e através dos “media” - a América contemporânea. É a última coisa que queríamos notar: “O Deus da Carnificina” pode ser visto como um retrato, uma caricatura, ?da América que, com razão ou sem ela (é irrelevante para o caso), persegue Polanski há trinta e tal anos...

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