Um homem é o seu fantoche

Se toda a gente gosta de Jodie Foster, nem toda a gente tem razões para gostar de Mel Gibson. No caso, o importante é que Foster gosta de Gibson. Defendeu-o aliás, em Cannes salvo erro, da melhor maneira possível: "Mel é complexo". Pois claro que é complexo, mas essa é uma ideia (a "complexidade") totalmente incompatível com a cultura das aparências promovida pelos tribunais mediáticos e pelo "jornalismo de celebridades" que estão por todo o lado (a "practical joke" de Joaquin Phoenix, "I'm Still Here", deu um filme que era uma bodega mas mostrava bem o desamparo daquela gente quando a coisa foge a um esquema pré-definido e se torna "complexa").


Vem isto a propósito de quê? De tudo o que conta em "O Castor", o filme em que Jodie Foster deu a mão a Mel Gibson no ponto mais baixo da reputação do ex-herói dos "Mad Max" (recorde-se: uma sucessão de desmandos na vida privada, que incluiram violência conjugal, copos ao volante, dislates anti-semitas, e provavelmente mais coisas). Sim, senhor, mas ainda se pode perguntar: fora o bonito gesto de ir arrancar um amigo ao index, que relevância tem isso em "O Castor"? Mais uma vez, toda: "O Castor" é um filme sobre um homem com a auto-estima abaixo de zero, metido numa depressão brutal, repudiado pela família e desrespeitado no trabalho. Vê-se Mel Gibson nestes preparos e acredita-se logo, o filme joga bem com essa reverberação e percebe-se porque é que Foster disse que "O Castor" só fazia sentido com Gibson.

Esta energia faz meio filme. A cena - oh como é assustadoramente ridículo um homem deprimido - em que Gibson, sozinho com um minibar, faz uma patética tentativa de suicídio, é de uma justeza dramática notável. Também é uma entrada numa "twilight zone": é dessa cena que Gibson emerge com a salvação na mão, literalmente na mão: um fantoche, o Castor, que se torna o seu alter ego, a sua voz, o seu aliado para a reconquista da família e do mundo. Evidentemente, toda a gente se pergunta se a emenda não será pior do que o soneto, e essa pergunta, bom, é a história do filme. Pelo menos a história interessante (há toda uma intriga com os filhos, e a amiga dos filhos, que soa a dispersão irrelevante), progressivamente mais louca e incomodativa, rumo ao desfecho lógico (mas nada óbvio: Foster é Foster, mas Hollywood continua a ser Hollywood) de uma narrativa que começou por ser "psicoterapêutica" e a dado passo resvalou para uma rima de todas aquelas clássicas histórias de possessão em que há bonecos a tomarem conta da personalidade dos seus donos.

Este é o meio filme interessante em "O Castor"; pena que Jodie abdique da coesão maníaca da relação de Gibson com o boneco, para "abrir" o filme, enredá-lo numa história de "pais e filhos" francamente banal, que depois até lhe traz problemas no "dénouement" (a câmara já não sabe muito bem com quem estar, se com o pai, se com os miudos, e isso aborrece um bocado). E portanto este filme que sabe muito bem como começar mas se mostra um bocado perdido quando se trata de acabar passa a ser, em simultâneo, o mais frustrante e o mais interessante de todos os filmes realizados por Jodie Foster. Paradoxo? Não, apenas "complexo".

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