Os mistérios da fé

Se a fé é algo de profundamente íntimo, interiorizado, decorre que um filme onde se interrogue a fé dificilmente será uma obra dinâmica. Isto serve já para desencorajar aqueles espectadores que gostam que se "passe" qualquer coisa de "visível" nos filmes. "Lourdes" é um filme onde a tensão está toda no que não se diz, no que se sugere, na ambiguidade que a austríaca Jessica Hausner instala desde a primeira imagem, nos movimentos quase imperceptíveis que propulsionam o seu olhar clínico sobre uma excursão de peregrinos ao santuário de Lourdes.


Essa frieza costuma ser marca registada dos novos cineastas austríacos (Michael Glawogger, Ulrich Seidl, Barbara Albert) mas surge aqui mediada por um olhar significativamente humanista, pacientemente equilibrado, que recusa tomar partido e prefere deixar ao seu espectador a escolha de um ponto de vista perante os acontecimentos que se contam. Que não são tanto acontecimentos físicos como o jogo de emoções entre uma entrevada desencantada para quem estas peregrinações são uma fuga à solidão (uma grande Sylvie Testud), três voluntários da Ordem de Malta com atitudes diferentes perante o seu voluntariado, e alguns peregrinos para quem a fé e os milagres são questões de foros bem diferentes, contrapostos ao retrato do santuário como um ponto de turismo religioso ostensivo.

Hausner filma tudo com uma extraordinária paciência observacional, um uso inteligentíssimo do zoom, sempre em planos de conjunto - como se neste contexto fosse impossível separar o homem do grupo, como se a religião quase exigisse que o homem abdicasse de uma postura pessoal perante o mistério da fé. Mas tudo não passa de interpretações possíveis perante um filme cuja transparência límpida da forma esconde um espantoso mistério de conteúdo.

Confirma-se: não é preciso encher o écrã com explosões para que se passem coisas assombrosas num filme. "Lourdes" é magnífico.

Sugerir correcção
Comentar