Mundo fantasma

Os fantasmas da câmara e os fantasmas da imaginação têm a mesma natureza.

Em muitos dos seus filmes, e por certo em vários dos seus maiores filmes, Oliveira inventou um tempo e uma época, lançando códigos (de conduta social, de representação, de narração) que o senso comum daria por "desactualizados" ao confronto com aquilo a que o senso comum chama a "actualidade". A tensão gerada por tal confronto nem sempre é o elemento essencial, mas por norma é um dado determinante, ao menos no modo como afasta os filmes de um naturalismo puramente mimético e "contemporâneo". Isto tem-se adensado nos últimos anos - "Belle Toujours", as "Singularidades de uma Rapariga Loura" - e "O Estranho Caso de Angélica" também é assim, dominado pelo "princípio da incerteza" cronológica. Quando tudo parece apontar para determinada (e passada) época, eis que o "nosso tempo" irrompe, quase como um arrepio. Nas "Singularidades" era poderosíssimo o momento em que, por entre as incidências queirozianas da narrativa (era, recorde-se, uma adaptação de uma história de Eça), alguém vinha falar em "euros". Na "Angélica" não faltam momentos destes.

E porventura com outra dimensão, uma vez que é um filme que pratica o "overlapping" temporal (passe o anglófono palavrão) de várias maneiras. É, para começar, baseado num argumento que Oliveira escreveu no princípio dos anos 50 e nunca tinha podido ou querido filmar até agora: a história de um fotógrafo que se apaixona pelo cadáver, jovem e belo, de uma rapariga morta subitamente. Depois, é um filme que evoca, através dessa personagem do fotógrafo (Ricardo Trepa, mais do que nunca a interpretar um "duplo" do seu avô), o que parecem ser "revisitações" de alguns momentos da obra de Oliveira, do "Douro" à "Caça". Finalmente, é um filme que joga, a partir de certa altura a pleno vapor, com o arcaísmo cinematográfico, com o "efeito especial" rudimentar (ou seja: com o "efeito especial" tornado "efeito poético"), de inspiração que podia ter nascido em Méliès ou em Cocteau.

Apesar de toda a tensão criada pelo choque de códigos, ou pelas conversas onde se discute o "mundo contemporâneo", este último aspecto é essencial, porque o "Estranho Caso de Angélica", no limite, é um filme sobre o cinema, ou mais especificamente, um filme sobre uma atracção (entre a máxima inocência e máxima perversidade) pelo cinema como porta de entrada para um mundo alternativo, onde tudo é possível (até uma história de amor com uma rapariga morta). Talvez não se exagere muito se, desse ponto de vista, se disser que se trata dos filmes mais confessionais de Oliveira, e não custa nada imaginá-lo a escrever este argumento nos anos 50, altura em que estava, na prática, impossibilitado de filmar alguma coisa com este tipo de fôlego. É pela câmara do fotógrafo que a rapariga se manifesta, ou que o fotógrafo imagina que a rapariga se manifesta - vai dar ao mesmo, porque os fantasmas da câmara e os fantasmas da imaginação têm, no fundo, a mesma natureza. "O Estranho Caso de Angélica" só diz isto. E o que é que ele faz lembrar que tenha sido feito em tempos recentes? Apenas "A Fronteira do Amanhecer", de outro "arcaico", Philippe Garrel, para quem o cinema também é uma porta de entrada para um mundo que se liberta do meramente "possível", quer dizer, do tristemente "real".

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