O ecrã como abismo

Objecto vindo de lugar nenhum, autêntico "monólito negro" na paisagem do cinema americano contemporâneo

"Two Lane Blacktop", a obra-prima de Monte Hellman, um dos grandes filmes americanos dos anos 70, e o "road movie" que por si mesmo consagrou o género como uma metafísica da apatia, ou coisa parecida, terminava com a película a arder. A última coisa que se via era um fotograma incendiado, o filme a desfazer-se à nossa frente - como se fosse a única maneira de acabar com aquilo, porque "a estrada não tem fim" (como dizia o título português de "Two Lane Blacktop") e assim sendo é uma estrada para lugar nenhum, uma "road to nowhere".


Quase quarenta anos depois, e perante um filme chamado, justamente, "Road to Nowhere", é inevitável pensar que Monte Hellman brinca aos encadeados: da película de "Blacktop" ao DVD que está no centro do primeiro plano deste filme, um DVD onde o título do filme está escrito a caneta (como num vulgar DVD pirata) e que é posto a rodar num computador portátil. Primeiro sinal labiríntico. Depois, a câmara de Hellman mergulha em zoom sobre o ecrã do portátil, até que as margens do enquadramento do filme e do filme no filme sejam coincidentes - e a partir desse momento o labirinto é mais do que um sinal, é o território, bifurcado, incerto, especular, sem saída, que "Road to Nowhere" habita até ao fim (e desta vez há um "fim", embora tudo possa sempre voltar ao princípio: ao último plano do filme, podia suceder-se o primeiro, a rodela a ser inserida no leitor, e tudo a começar outra vez). As primeiras imagens do "filme no filme" (ou será, apenas, do "filme") são um longo, longuíssimo, plano de uma rapariga sentada na cama a secar o cabelo, enquanto na banda sonora passa uma canção melancólica sobre "ajuda para passar a noite". É fabuloso - dávamos um doce a quem provar que nos últimos anos viu um filme a entrar desta maneira. Se "Road to Nowhere" acabasse no fim desse plano com o secador já tinha minutos que bastassem para que só tivéssemos vontade de bater palmas.

E esses minutos, como um daqueles "sumários" ao género dos que Hitchcock gostava de fazer, condensam a matéria que "Road to Nowhere" tem para explorar: a componente reflexiva, de filme sobre o cinema, sobre o cinema como ele se faz e se vê hoje (os ecrãs eletrónicos, os aparelhos de vídeo, etc) e sobre o cinema como ele sempre foi (coisa abissal, mergulho sobre o ecrã, fascínio e perdições, espelhos e reflexos); e, não negligenciemos isto, uma infinita paciência para seguir, registar, deixar-se hipnotizar, pelos mais ínfimos e anódinos gestos da actriz principal, Shannyn Sossamon, ora luz ora sombra, quer dizer, actriz em "chiaroscuro" (o "casting", o "casting" e o "casting" são as três tarefas mais importantes de um cineasta, diz o realizador do filme no filme, que se chama Mitchell Haven e tem, caso não se note, as mesmas iniciais que Monte Hellman). Nesse ponto, o filme e o filme no filme tocam-se: são ambos dominados pelo inexorável fascínio por uma mulher, dúplice e misteriosa. "Le cinéma, c''est faire des jolies femmes faire des jolies choses", não foi Monte Hellman que o disse mas podia ter sido.

Objecto vindo de lugar nenhum, autêntico "monólito negro" na paisagem do cinema americano contemporâneo, "Road to Nowhere" só pode ser comparado com algum Lynch (o de "Inland Empire", mas sem o sobrenatural e sem a psicanálise), na sua relação/reinvenção com uma mitologia hollywoodiana (e mais do que hollywoodiana: até Bergman é explicitamente citado), e pelo seu lado vertiginosamente reflexivo e terminal (tudo acaba com um movimento de câmara a perder-se dentro dos contornos negros de um poster da protagonista), como o "Cigarette Burns" de John Carpenter. Ou seja, com os grandes filmes americanos sobre a cinefilia no século XXI. E parece uma coisa imensa: Monte Hellman disse algures que "não bastava vê-lo duas vezes" e é capaz de ter razão. Assim como assim, depois de escrito este texto ainda o vamos ver uma terceira vez.

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