Os anjos de Charlie no manicómio

Um bicho como "Mundo Surreal" é coisa tão esquisita e estranha que a sua simples existência enquanto aspirante a "blockbuster" hollywoodiano financiado por um grande estúdio é digna de atenção. Uma fantasia barroca e surreal a meio caminho entre Terry Gilliam, "Os Anjos de Charlie" e a "Matrix", rodada como se Baz Luhrmann tivesse decidido que "A Origem" iria ser um musical à la "Moulin Rouge", cujas sequências de acção "girl-power" retro-futuristas parecem uma encarnação video-jogo dos sonhos dos "tiranossáurios em F-16" que Calvin tinha nas aulas? A primeira reacção é que quem teve esta ideia deve ter tomado drogas de altíssima qualidade. A segunda é que nem Zack Snyder, o virtuoso visual de "300" e "Watchmen - Os Guardiões", a consegue levar a bom termo, mas a tentativa é só por si estimulante.


"Mundo Surreal" parte de uma premissa do melodrama gótico clássico - a órfã desgraçada que o pérfido padrasto atira para o manicómio para poder usufruir do testamento da viúva - para se transformar numa meditação escapista e rococó sobre o poder da narrativa e da imaginação. A dita cuja orfãzinha refugia-se no seu próprio mundo interior, seguindo os preceitos da psiquiatra polaca que gere a instituição, para transfigurar a realidade e, ao fazê-lo, atingir a liberdade. As internadas impotentes tornam-se em guerreiras imbatíveis transportadas pela sua força interior, tornando o filme numa espécie de odisseia "descobre a leoa que há em ti", "girl power" alimentado a determinação.

O que estaria tudo muito bem se não se desse o caso de Zack Snyder ter uma imaginação visual muito mais fervilhante do que jeito para escrever histórias. O seu guião é uma corda da roupa atabalhoada, feita de citações coladas com cuspo e atadas com nós lassos, reduzindo a progressão narrativa de "Mundo Surreal" a uma sucessão de tarefas de video-jogo, onde dragões e bombardeiros, dirigíveis e mortos-vivos coexistem num universo quase demencial que deve tanto ao surrealismo non-sense de Terry Gilliam como às distopias "steam-punk" dos jogos video. O todo envolvido, primeiro, num musical de bastidores estilizado a meio caminho entre "Burlesque" e "Moulin Rouge" e um melodrama gótico desnaturado saidinho dos primórdios do mundo.

A salganhada resultante perde-se por ser um abstracto construído a partir de citações e referências, tão superficial e vácuo como as suas personagens, arquétipos sem substância que preenchem os requisitos exigidos pelo teatro de marionetas que Snyder montou. Que as suas actrizes consigam emprestar-lhes espessura e emoção é algo que só fica bem, sobretudo a Emily Browning, Abbie Cornish, Jena Malone e Carla Gugino; que o filme, apesar dessa frieza quase arquitectural que se admira sem nos agarrar, se aguente ainda assim como um objecto íntegro é ainda mais espantoso. Não fazemos ideia do que vai acontecer nas bilheteiras a "Mundo Surreal", mas o que podemos dizer para já é que dificilmente Hollywood vai correr outro risco tão fora do baralho como esta fantasia esgrouviada que traz "culto" estampado em tudo o que é imagem.

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