Era uma vez no Oeste

Uma brilhante demonstração de virtuosismo, fria e letal como uma faca no tecido formal de um cinema autoreflexivo

O universo fílmico dos irmãos Joel e Ethan Coen passa inúmeras vezes por uma reescrita pessoal da memória do cinema clássico, por uma reelaboração do que resta do conceito de género, deixando quase sempre pistas de reconhecimento, numa estratégia pós-modernista de pastiche e (ou) de paródia. Foi assim com o opus 1, "Sangue por Sangue" (1984), a transformar vestígios de Hitchcock num objecto autoreflexivo, com "Histórias de Gangsters" (1990), fornecendo bastos motivos de análise abstracta da violência no filme de gangsters, depois da aventura atmosférica do "film noir", ou com "Fargo" (1996), parodiando o "crime movie" numa zona em que "thriller" e comédia se cruzam em perigosa consonância. Mesmo objectos mais "inqualificáveis" revelavam estranhas rimas com o passado filtrado por uma fina rede de referências: "Barton Fink" (1991) construía uma homenagem surrealizante ao filme de terror, numa dimensão de paranóia; "O Grande Salto" (1994) evocava em filigrana um Capra fora de contexto; "Irmão, Onde Estás" (2000) reaproveitava o título do filme ficcional do início de "Sullivan''s Travels" (Preston Sturges, 1941) para visitar o "filme de prisão", em jeito de Odisseia moderna; para já não mencionar a paródia das paródias, "Arizona Júnior" (1987), algures entre o burlesco e os resquícios do "thriller". Em toda a sua obra evidencia-se, pois, o gosto pela textualidade de segunda instância, exigindo do espectador chaves sucessivas de interpretação e apostando na elaboração sistemática e sofisticada de sinais, num formalismo pensado ao milímetro.


Agora chega a vez de os irmãos abordarem o "western", sempre do modo como reflectem sobre a verdade dos géneros, com a imensa distância que se impõe por diversas razões: primeiro, trata-se de um género morto e enterrado, com sucessivas certidões de óbito: depois de "Imperdoável" de Eastwood já não há hipóteses de heroicidade ou de vertente épica, ou seja, resta sobretudo o grafismo e as situações extremas, em que os tropos se acumulam numa espécie de vertigem sem sentido. Em segundo lugar, "Indomável" ("True Grit" no original, tal como na novela de partida, de Charles Portis, baseada num episódio verídico, exercício complexo de "non fiction" romanceada) assume uma outra mediação: é um "remake" explícito de "Velha Raposa" (1969), já de si um "western" moribundo, criado por uma das "velhas raposas" de Hollywood, Henry Hathaway, para o carisma final de uma das estrelas incontornáveis do género, John Wayne, em constante caricatura dos seus tiques, apesar de ter sido levado a sério, o que prova o Óscar de melhor actor que coroou a sua rábula, bem como a existência de uma famigerada sequela "Rooster Cogburn/O Sheriff" (Stuart Millar, 1975), juntando Wayne a outras das glórias do passado, também ela em registo caricatural, Katharine Hepburn.

Estamos, pois, perante um objecto esquisito que regressa a um género extinto por via de um labirinto de referências intra-cinematográficas: se "Velha Raposa" já se perfilava como uma paródia de personagens e de actores, "Indomável" é uma paródia de uma paródia, um divertimento quase autosuficiente, destinado a congelar características discerníveis de um discurso ultrapassado, escrito (apetecia dizer "sobre-escrito") com a plena consciência disso. Se algo avulta neste exercício de estilo é, precisamente, a perda de qualquer inocência, apesar do imenso cuidado na escolha da jovem actriz (uma belicosa Hailee Steinfeld, vinda da televisão), para encarnar a adolescente que procura um vingador para a morte do pai. Assim, o "western" de vingança desdobra-se em previsíveis peripécias de perseguições e tiroteios, sempre desenhados com o distanciamento do pastiche e ancorados na memória de John Wayne, o que não constitui defeito (mas feitio), uma vez que os Coen nunca pretendem construir emoção, aspirando antes a um jogo de gato e rato com o espectador prevenido.

Contudo, onde a aposta atingia o paroxismo era na escolha do actor que substituiria Wayne, de tal modo se exigia uma "persona" forte e diversa: Jeff Bridges ganha a batalha, porque resiste à emulação e faz de si próprio, com a dignidade que a sua longa carreira lhe confere e o mais espantoso passa pela secura que consegue transmitir ao seu anti-herói. Mais: se ainda houvesse "western" este seria um bom exemplo de encadeamento narrativo, de formulação de propostas formais arrojadas e inovadoras. Os Coen filmam impecavelmente com a noção irrepreensível do espaço, dos longos planos de grua, da articulação dos conjuntos: veja-se a magnífica sequência em que Matt Damon (uma importantíssima mais-valia) alveja de longe os bandidos, ou a preciosa encenação do ataque à cabana com a jovem no telhado e Bridges escondido cá fora, reformulando, de forma precisa, a modernização necessária do campo/contracampo.

Por tudo isto, "Indomável" constitui um prazer para os olhos e para a mente, fazendo da racionalidade o seu código, embora longe do soco no estômago que tornava "Este País Não É para Velhos" porventura a obra-prima dos Coen. Pelo contrário, este post-"western" assume-se como o que é, na verdade: uma brilhante demonstração de virtuosismo, fria e letal como uma faca no tecido formal de um cinema questionador e autoreflexivo.

Sugerir correcção
Comentar