Com Que Voz

Num momento em que o documentário ganhou foros de género maior no panorama das estreias nacionais, depois do relativos sucesso de "Lisboetas", de Sérgio Treffaut e da proliferação de retratos compósitos da História portuguesa recente, não admirará a programação para os grandes ecrãs de "Alain Oulman - Com Que Voz", biografia comovida e, por vezes, comovente de um dos grandes compositores de fado, o homem que operou a radical transformação do género, oferecendo à voz de Amália Rodrigues alguns dos temas mais espantosos e a oportunidade de cantar poemas que não caberiam na estreiteza melódica e harmónica dos fados tradicionais: de "Maria Lisboa" a "Gaivota", de "Fado Português", com poema de José Régio, a "Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente" ou "Com Que Voz", musicando a textualidade complexa de Luís de Camões.


E o que é "Com Que Voz"? Uma interessante recolha de materiais de arquivo, alguns deles já conhecidos, da longa biografia de Amália, "Estranha Forma de Vida" (nomeadamente o segmento final, entre o improviso e a encenação, ensaiando com o seu compositor de eleição um novo tema), excertos de programas de televisão (o muito citado "julgamento" de Amália, por se "atrever" a cantar Camões com música de um "estrangeiro") ou actuações seleccionadas da Diva, interpretando temas clássicos da sua extensa colaboração com Oulman.

Tudo aparece, porém, sob uma nova perspectiva e uma nova ordem, quase sempre cronológica, de forma a traçar um retrato de corpo inteiro de um homem que, embora conotado, sobretudo, com a sua actividade musical, se desdobrou em múltiplas actividades: de encenador de teatro - destaque para as suas fulcrais colaborações com os Lisbon Players, companhia de língua inglesa, no Estrela Hall em Lisboa, e para um belíssimo espectáculo da Companhia Portuguesa de Comediantes, no Teatro Villaret, "O Homem Que Fazia Chover", pretexto para ouvir depoimentos de Raul Solnado, Eunice Muñoz ou João Perry; de editor literário, à frente do gigante francês, a Calmann-Levy, empresa familiar (Oulman era filho da filha do fundador da editora), ocasião para falar do seu papel como divulgador da obra de Patrícia Highsmith e para entrevistar dos autores de sucesso que incentivou no mundo das letras, Catherine Clément e o israelita Amos Oz, projectando-os no mercado francês e europeu; de militante de esquerda, estranhamente ligado à cisão maoista do Partido Comunista Português (muito curiosa a escolha de Zita Seabra para vocalizar mais uma bicada à politica sectária do Partido a que pertenceu) e expulso do Portugal de Salazar, depois de ter estado preso pela PIDE, salvo "in extremis" pelos bons contactos familiares e pelo facto de ser cidadão francês.

Ou seja, esta biografia de Alain Oulman, compositor e homem de cultura (recordado por Rui Vieira Nery, Nuno Vieira de Almeida ou responsáveis editoriais franceses), desdobra-se numa complicada retrospectiva histórica, esboçando um retrato do país nas décadas de 60 e 70, sem esquecer a inclusão de imagens inevitáveis, mas breves, do 25 de Abril. Conduzido, de início, pelos depoimentos das irmãs mais velhas, que historiam a problemática de uma família judia luso-francesa, com um pai impositivo, um irmão morto durante a guerra, com cuja estatura teve de medir-se durante toda a sua curta vida, alargado depois à participação de outros familiares e da ex-mulher, inglesa que conhecera nos Lisbon Players (extremamente comovente o momento em que ela fala da morte prematura e limpa uma lágrima), o filme aparece filtrado pela homenagem póstuma do filho, Nicholas Oulman, realizador e argumentista: logo trata-se de uma visão intimista e próxima de quem quer recuperar o que conheceu pouco (ou nada), um interessante documento, bem pesquisado e correctamente encadeado.

O único problema passa pela estrutura, tendo em conta a sua projecção numa sala de cinema: "Alain Oulman - Com Que Voz" faz sentido enquanto documentário para televisão, mas depois de filmes como "Ruínas", de Manuel Mozos, "Fantasia Lusitana", de João Canijo, com sofisticados modos de interrogar o passado português, ou, se quisermos reverter para a memória familiar, "Florette", de Treffaut, este filme faz figura de mitigada, embora fascinante, biografia para passar em horário nobre de uma televisão, parceiro digno de "Uma Estranha Forma de Vida", sobre Amália. Não está, pois sequer, em questão a qualidade do trabalho, mas a sua adequação ao consumo no grande ecrã.

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