Stallone e amigos

Todos são caricaturas de si próprios mas envergam a caricatura com a maior dignidade que lhes é possível.

Sylvester Stallone é um anacronismo, e no momento em que o percebeu arranjou um "tema" tão bom como qualquer outro: filmar-se como anacrónico. Esta consciência - é acima de tudo uma "consciência" - encharcava de uma ponta à outra "Rocky Balboa" e "John Rambo", revisões recentes das suas duas personagens mais célebres, e atribuia-lhes uma melancolia exposta e desprotegida que fazia desses filmes "especiais". Mas depois de Rocky e de Rambo era preciso reinventar o truque. Ou multiplicá-lo: "Os Mercenários" é Stallone a dirigir uma associação de veteranos dos anos 80, anacronismos como ele (Mickey Rourke ou Dolph Lundgren...) ou apenas mais interessados noutras coisas (a cena com Schwarzenegger, não creditado, tal como Bruce Willis, é impagável).

A "acção" é canónica (e na parte final um bocado maçadora) mas está desde o princípio coberta de irrisão - a partir do momento em que, na sequência introdutória com piratas somalis, o telemóvel de Jason Statham recebe um SMS. Os piratas somalis são a referência geopolítica mais "realista" do filme; depois, trata-se de ir "libertar" uma micro-nação latino-americana totalmente fictícia cujo ditador não é um Castro, nem mesmo um Chávez, antes um pobre diabo manipulado por um ex-agente da CIA (interpretado pelo também muito "anos 80" Eric Roberts). Bye bye herói reaganiano que chacinava ("Rambo II") ou convertia ("Rocky IV") comunistas onde quer que eles estivessem: ninguém percebe que raio de regime político é aquele que vigora em Vilena. Nem importa, Stallone e seus pares só precisam de "sparring partners" que possam ir aviando sem chatear ninguém (como nos "cartoons": a violência de "Os Mercenários" tem o seu "gore" mas mais ainda é "Tom & Jerry", que o diga Dolph Lundgren...).

O que acontece nos intervalos da acção, e às vezes durante a acção, é que tem piada. O facto de todos serem caricaturas de si próprios mas envergarem a caricatura com a maior dignidade que lhes é possível. Mickey Rourke até tem um monólogo, que será "mau Shakespeare" (como diz o vilão Roberts a propósito de outra coisa) mas que ele diz com o mesmo empenho com que diria "bom Shakespeare", como que a lembrar que ele, ao contrário dos outros, nos anos 80 era um "actor", não um "action man". Depois, à falta de valores políticos, sobram valores mais simples (e mais antigos): no mundo de "Os Mercenários" maltratar uma mulher é o único crime imperdoável. Não são "homens para queimar" como os de Ford, nem como os de Hawks ou de Walsh, mas são mais parecidos com eles do que quaisquer outros que andem por aí pelos ecrans. Até falam como eles, em "one liners" e réplicas de humor agressivo, maneira de solidificarem a amizade evacuando o sentimentalismo (a melhor descrição de "Os Mercenários" diria: é um filme sobre um grupo de amigos). Não é brincadeira, o filme tem diálogos óptimos - "mau Shakespeare" é melhor do que muita coisa. Por outro lado, Stallone não é John Wayne. Ainda assim, no momento em que salva a rapariga, por um instante pensamos que vai pegar nela ao colo como se ela fosse a Natalie Wood. A quem, de resto, dá uns ares.

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