O filme que queria ser amado

Não é um grande filme, mas é intrigante: um melodrama clássico ao qual foi cirurgicamente removida a tendência lacrimejante

Ao longo de 2009, "Precious" tornou-se num daqueles pequenos fenómenos explorados até à exaustão pelos media como exemplo da "vitalidade" do cinema independente: um filmezinho independente realizado por um cineasta sem grande experiência, apoiado numa actriz desconhecida, contando uma história da desgraçadinha ambientada no gueto urbano nova-iorquino e recusado por todos os grandes estúdios, que ganha o prémio do público em Sundance, obtém o apadrinhamento da diva do "talk-show" Oprah Winfrey, torna-se um "pára-raios" sociológico sobre as representações da comunidade negra, e recebe seis nomeações para os Óscares da Academia em todas as categorias principais (incluindo melhor filme, melhor actriz e melhor realizador).


Isto não significa que a segunda longa-metragem assinada por Lee Daniels, produtor de "Depois do Ódio" (Marc Forster, 2001, o filme que deu o Oscar a Halle Berry), seja uma obra-prima. Mas é um objecto peculiar, que reivindica de modo sintomaticamente moderno a herança da longa linhagem do "drama social" que sempre fez parte da grande produção hollywoodiana para logo a seguir recusar as suas âncoras mais evidentes - sobretudo se tomarmos em conta que tudo nele grita dramalhão lacrimejante e meloso, "problem picture" à moda antiga sobre os horrores sociais dos guetos desfavorecidos. A Precious do título é uma adolescente quase iletrada, grávida pela segunda vez de um pai que a violou, vivendo sob o jugo de uma mãe monstruosa que a trata quase como escrava.

A surpresa está na secura do melodrama, que Daniels evacua de todos os rodriguinhos ornamentados e comoções manipuladoras - para isso contribui a mera presença física da estreante Gabourey Sidibe, verdadeiro bloco de ébano cuja voz-off nos guia pelo pesadelo da sua vida sem vitimização nem histrionismo. Nessa recusa do emocional, "Precious" ganha qualquer coisa de brutal e entomológico, com um olhar clínico que nos recordou aqui e ali François Ozon, paredes meias com uma mistura de fantasia e grotesco que remete para Terry Gilliam. E ganha também a peculiar singularidade de um objecto enxutíssimo, que reduz o género às suas componentes mais irredutíveis, numa espécie de isolamento laboratorial.

É um tom difícil de manter ao longo de todo um filme e Daniels perde-o a meio, quando Precious sai finalmente de casa e se abre ao mundo e às suas possibilidades. Essa abertura corresponde também a uma curiosa abertura do próprio filme, que revela a sua fé no poder redentor da palavra por oposição à tirania da imagem (é a escrita que "salva" Precious da imagem que "aprisiona" a sua mãe, que vive fechada no apartamento a ver televisão), ou o facto deste universo ser exclusivamente feminino e não necessitar sequer do masculino. Mas coincide também com a rendição a um percurso melodramático muito mais convencional e previsível, que, felizmente, se inverte nos últimos vinte minutos, sublinhando como "Precious" está menos interessado no final feliz da praxe ou em apaziguar as boas consciências dando-lhes a entender que "todos viveram felizes para sempre". A vida não é um conto de fadas e Precious não é uma princesa encantada.

À sua imagem, também o filme está longe de ser perfeito - há cedências pontuais ao mau gosto, uma sofreguidão "topa-a-tudo" que o vê a espaços espatifar-se ao comprido (a citação/homenagem às "Duas Mulheres" de Vittorio de Sica é tão canhestra e despropositada que só dá vontade de rir). Mas a sinceridade é inegável, e é ela dá sentido a essas falhas: tal como a sua personagem que só quer que a deixem viver a sua vida, é um filme tão convicto do valor da história que conta que não recua perante nada para ser amado. Goste-se ou não, isso dá-lhe uma personalidade que poucos filmes americanos recentes têm tido.

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