Marretas no sótão

Spike Jonze, até nos telediscos (alguns nada maus), tem um interesse particular por neuroses e outros macaquinhos no sótão ("Being John Malkovich", "Adaptation"). Não é, portanto, razão para grande surpresa que agora apareça com esta fábula levemente freudiana, feita de tristeza, raiva, uns pozinhos de Édipo e toda aquela "quirkiness" (falta-nos melhor palavra em português), aliás já a caminho de se tornar um bocado irritante, característica dos filmes dele, dos de Charlie Kaufman, e doutros que andam por essa órbita.


"O Sítio das Coisas Selvagens" diz que está tudo na mente; e se na mente está tudo o que entristece e enfurece, que se encontre na mente o remédio. É a moral da história, aparentemente fiel à do livro adaptado pelo argumento, espécie de "clássico moderno" da literatura infantil americana, da autoria de Maurice Sendak, e publicado nos anos 60 (um bocadinho de investigação rapidamente nos deixa mais curiosos com o livro do que interessados no filme de Jonze).

Reduzida ao esqueleto, a intriga tem a limpidez de qualquer fábula. Um miudo zanga-se com a irmã, com a mãe, com o namorado da mãe, e no cúmulo da raiva abre-se-lhe uma porta mental qualquer que o conduz a um mundo imaginário, povoado por criaturas vagamente parecidas com bois, cães e outros animais, e mais ainda com os Marretas (o que não é de estranhar, porque as criaturas foram feitas pela Jim Henson Creature Shop). Depois dos quipróquós iniciais os bois e os cães (que têm vozes famosas: James Gandolfini, Forest Whitaker, Chris Cooper) tratam o miudo nas palminhas, aclamam-no como o "Rei" (o "rei" que ele gostava de ser em casa, naturalmente). Finalmente, o miudo farta-se de tanto mimo, ou lembra-se que não há amor como o amor de mãe.

Causa um certo efeito, durante algum tempo. A aposta é confrontar uma psique infantil, no que ela tem de mais definido, com a estranheza desconexa do universo das criaturas, que é uma representação enviesada de uma mistura de sentimentos (a tristeza, a raiva, o amor, o despeito) e de uma teia de relações, complicadas e incompletamente explicadas, que por sua vez está no lugar do "mundo dos adultos".

A cena da chegada à ilha (é duma ilha que se trata) é francamente boa: há ali uma violência vinda do nada (as criaturas andam a destruir casas, ou lá o que é), uma reformulação dos clássicos "ogres" ou clássicas "fadas" (todos têm um pouco das duas coisas), que figura bem o choque, o "choque mental". A gravidade e a dicção perfeita com que a bicharada diz os seus diálogos - absurdos, neuróticos, angustiados - cria uma sensação de estranheza que tanto atrai como repele (certas cenas são um bocado "Beckett com peluches"). Depois começa a cansar, a tornar-se demasiado óbvio (as rimas, as frases que aludem à "vida real" do miudo) como alegoria terapêutica, e ao mesmo tempo demasiado aleatório (caminhada para aqui, caminhada para ali, mas progressivamente mais mole e mais esgotado).

O miudo é bom (chama-se Max Records), as vozes são boas (Cooper e Gandolfini, sobretudo), mas rapidamente se percebe que se Jonze tem um "projecto melancólico" não desprovido de originalidade e poder de sedução, esse projecto está condenado ao semi-fracasso (sejamos positivos: ao sucesso relativo!), à míngua de um talento que dê para mais do que diálogos estrambólicos e uma meia-dúzia de, chamemos-lhes assim, "ideias de visual". Sorry, Spike, das outras vezes funcionou um bocadinho melhor. E as canções de Karen O (dos Yeah Yeah Yeahs), em modo gata a miar (é a "melancolia", a "tristeza"), que encharcam a banda sonora, não ajudam muito.

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