Alguém viu o noivo?

Um filme que desperdiça o essencial: uma comicidade potencialmente subversiva

"A Ressaca" de Todd Phillips possui uma ideia de base interessante para o desenvolvimento do argumento, jogar com o "flashback" inicial para construir todo o filme como um exercício sobre o esquecimento, provocado pela ingestão de um produto alucinogéneo, durante um brinde no topo do mundo, ou seja do alto de um hotel de luxo: quatro amigos decidem encenar a despedida de solteiro de um deles, em Las Vegas, e passam uma noite tresloucada, entre jogo, bebida, droga, sexo, gangs orientais, "strippers" e animais selvagens, criando uma branca total sobre os acontecimentos, como se tudo não passasse de um pesadelo. Quando acordam, a suite está em estado de sítio, existe um tigre na casa de banho, um bebé sem mãe, uma galinha tonta que se passeia pelo piano e, pior do que tudo, o noivo desapareceu.


Visto assim, parece material para uma descabelada comédia screwball, com reminiscências longínquas de "As Duas Feras" de Howard Hawks (o tigre misterioso a substituir o leopardo, a busca incessante do noivo perdido está em vez do osso de dinossauro), só que a reconstituição do percurso se faz de dia, numa cidade hostil, com surpresas constantes e gags inesperados: um chinês nu no porta-bagagens do carro da polícia roubado, a prisão com a experimentação de armas paralisantes, o dente que um deles (dentista de profissão) arrancou, sabe-se lá por quê, um colchão arremessado do hotel e espetado numa das espiras do edifício.

O problema principal passa pelo tempo infinito que tudo demora a deslindar, submetendo o espectador que não tem culpa a um longuíssimo sacrifício de arrostar com quase duas horas de violência surda e sem sentido aparente. No final, lá se encontra o noivo, tostado pelo Sol, ninguém percebe muito bem como, e o final feliz surge na cerimónia de casamento, jurando o par amor eterno e libertando-se o dentista infeliz de uma companheira indesejável e dominadora (como as mulheres "fatais" da screwball do passado). E, ó surpresas das surpresas, há fichas de jogos que constituem uma fortuna e uma máquina fotográfica com que o genérico final reconstitui uma espécie de irrisório filme pornográfico da noite.

Divertido? Sim e não. Por um lado, retiramos algum (pouco) prazer do disparate total de percebermos que o tigre fora retirado da casa do pugilista Mike Tyson, que o dentista se casara com uma mãe solteira, prostituta e "stripper", que a polícia se compraz em torturar os prisioneiros perante o olhar tenebroso de um bando de crianças insuportáveis. Por outro, o cansaço provocado pela infinita sucessão de peripécias não compensa, porque não serve se não para indiciar a incapacidade de organizar ideias, sem recorrer às mais rasteiras tácticas da farsa desmiolada, lançando um olhar reaccionário sobre as mulheres ou as minorias (não, não estamos a puxar pelo politicamente correcto), num filme de "buddies", sem nervo, reduzido a piscadelas de olho inanes e patetas. Ou seja, a montanha pariu um rato ou melhor uma galinha, a tal que se passeia sem razão nenhuma pelo quarto de hotel em desordem. Nem o caos funciona, porque se destina, tão-só a apaziguar consciências e a deixar tudo na mesma.

Em suma, um filme inútil, sobretudo quando desperdiça o essencial, uma comicidade potencialmente subversiva, transformada em total conservação dos valores mais conservadores. E, depois, constitui uma tortura, prolongando o tempo da narrativa para além do admissível.

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