Tempus Fugit

O tempo voa, mas o filme não chega a efectuar o "take off", diz Luís Miguel Oliveira sobre o título mais nomeado aos Óscares. Qual é a sua opinião?

Sendo David Fincher um cineasta frio e cerebral, "desumano" (ou "desumanista", passe a expressão), era com curiosidade e alguma expectativa que aguardávamos esta sua incursão no "melodrama de vida", coisa a priori tão distante de tudo o que o autor de "Fight Club" e "Zodiac" (que por alguma razão hoje nos parecem melhores, mais escorregadios, do que "Seven") tinha feito até agora. Se a expectativa sai furada, isso tem de facto alguma coisa a ver com as temperaturas - os trópicos não são definitivamente o habitat de um cineasta polar como Fincher, e é tudo o que devia ser "quente", e bem se esforça para o ser, que mais insatisfatório é no "Estranho Caso de Benjamin Button" (a história de Scott Fitzgerald em que se baseia fica lá muito para trás, mera "inspiração"). Resumindo o que toda a gente já sabe, "O Estranho Caso de Benjamin Button" é a história de um homem (Brad Pitt) que nasce velho e morre novo. Um recém-nascido engelhado e artrítico, um ancião com corpo e pele de bebé - e entre as duas coisas uma vida que se vê a andar para trás.

Antes de se revelar um estratagema inútil e quase metafórico (a segunda parte, a história de amor com Cate Blanchett no curto momento em que as idades batem certo com os corpos que têm) começa por ser uma alavanca para o absurdo figurativo, quase surrealista: há uma estranheza invulgar nas cenas com Pitt transformado em criança velha, tornadas perfeitamente convincentes pela boa saúde de gozam na Hollywood actual as artes da maquilhagem e dos efeitos especiais (até nos surpreende como é fácil acreditar no Pitt velho e não fazer mais perguntas).

Mas ainda antes de ser qualquer uma destas duas coisas era, sinalizada pela história do relógio cujos ponteiros andam ao contrário, a gota de "prédeterminação", o toque "desumano", mesmo maquinal, que podemos considerar como o pormenor mais "fincheriano": Benjamin Button tem o tempo "fechado", o tempo contado, sem a indefinição do tempo do homem comum (porque, por assim dizer, não há um limite para o avanço temporal mas há um limite preciso para o recuo temporal). Não deixamos de pensar que há aqui uma relação qualquer com "Zodiac", filme onde o tempo (embora correndo na direcção "normal") surgia constantemente marcado, e onde as personagens se perdiam de uma maneira que é impossível à personagem de Pitt.

Qual é exactamente essa relação é difícil de dizer. O filme parece perder determinação, razão de ser, ao longo do seu curso. Transforma-se numa história de testemunho do século XX americano (Button nasceu no dia do armistício da I Guerra), cujos sinais vão aparecendo fugazmente, como pedaços de uma paisagem entrevista pelas janelas de um comboio que não pára (ideia subtil, mas demasiado "turística" para se tornar relevante). No papel, o esquema do filme e do relato da vida de Button como testemunha do seu tempo (percebem-se as lembranças de "Forrest Gump", se se excluir o elogio da candura) seria representado por um longa linha vertical cruzada por vários pequenos traços horizontais.

É nesses pequenos traços (os barcos na II Guerra, a história com Tilda Swinton em Murmansk) que se encontram os momentos mais luminosos de "Benjamin Button". A linha vertical, por seu turno, cedo se conforma em ser o "truque" que sustenta (muito pouco convincentemente) um melodrama banalíssimo. O tempo voa, com certeza; mas é duvidoso que "O Estranho Caso de Benjamin Button", mesmo ao cabo de duas horas e meia às voltas na pista, chegue a efectuar o "take off".

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