O senhor do caos

Era inevitável, por isso dizemo-lo já: "O Cavaleiro das Trevas" está sob a sombra de Heath Ledger. Um filme que já se moveria pelos terrenos do negrume, tem uma carga adicional. O actor morreu em Janeiro, depois das filmagens, e fez um dos papéis da sua vida. Se o espírito do espectador fosse uma peneira, no final de "O Cavaleiro das Trevas" o que ficava era a pepita Joker. A penúltima interpretação do australiano é uma figura do caos que sobretudo inquieta (não sabemos se nos repele), um anti-Jack Nicholson, um jogral que não se ri com o estômago, mas que expectora a plenos pulmões.

O realizador Christopher Nolan leva Batman a sério. Onde Tim Burton ("Batman", 1989; "Batman Regressa", 1992) era fantasioso e diferido, Nolan é cheio de arestas e ancorado ao seu contexto histórico. Explora a famosa frase de Michael Caine (que regressa como o mordomo Alfred): "O Super-Homem é como a América se vê a si mesma e o Batman é como o resto do mundo vê a América."

Esse Verão americano está repleto de filmes de super-heróis ou associados à BD ("Iron Man", "O Incrível Hulk", vem aí "Hellboy II") que batem recordes de bilheteira. Para a história, fica para já um duelo de titãs: na semana passada, nos EUA, "O Cavaleiro das Trevas", adaptação de uma personagem da DC Comics, tornou-se o filme com a estreia mais lucrativa de sempre, batendo "Homem-Aranha 3" (2007), personagem da Marvel. Como escrevia a "Wired", "este Verão, os super-heróis salvaram Hollywood". E isto com Nolan e o seu homem de negro, Christian Bale, a levar Batman a sério.

Traduzindo: "O Cavaleiro das Trevas", em vez de uma parada encabeçada por Joker e seus acólitos atraindo os cidadãos de Gotham como o flautista atraía as crianças de Hamelin para a sua toca, tem um urbano e decadente assassino que amedronta uma cidade. Um terrorista? Pelo menos consegue enervar Daniel Maia, ilustrador português com trabalho em curso para a Marvel. "É absolutamente anarquista nos seus propósitos, pois até para com ele próprio não tem códigos de conduta específicos. Nesse sentido, é a incarnação do caos. Acaba por se tornar uma paródia demoníaca da imagem circense que assume."

A face e a moeda

Em vez de um Joker de casaca púrpura e laço verde, pintura a "eyliner" e "bâton" cereja, há uma figura de mortalha, um homem que, perante um livro de colorir, pinta fora das linhas. "A sua motivação principal é a de um anarquista. Falei muito com o Heath sobre isso, mesmo quando estávamos a terminar o guião [assinado por Nolan e pelo irmão Jonathan], e ambos concordámos que a força mais ameaçadora que a sociedade enfrenta é a anarquia pura", disse o realizador ao "Guardian".

Ledger, o homem que não gostava de BD, foi a um lugar escuro em busca da personagem. Juntou a anarquia UK de Johnny Rotten, dos Sex Pistols, com a loucura de Malcom McDowell em "Laranja Mecânica". E há quem veja mais. "Não via um vilão assim desde que Dennis Hopper fez de Frank Booth em 'Veludo Azul' - isto assusta ainda mais do que o Hannibal Lecter", disse ao "Independent" Gary Oldman, contido no papel do agente Jim Gordon em "O Cavaleiro das Trevas". "Diverti-me mais do que nunca, ou provavelmente mais do que alguma vez me divertirei, a interpretar uma personagem", disse Ledger após terminar o papel.

No filme assistimos à emergência de outro vilão clássico do mundo Batman (criado por Bob Kane, com Bill Finger e o ilustrador Jerry Robinson em 1939): Harvey Dent/Duas-Caras e a sua moeda da sorte. Interpreta-o Aaron Eckhart, como um cavaleiro branco da Justiça. Ele, Christian Bale e Heath Ledger dividem o protagonismo. E tropeçamos na ambiguidade a cada passo. "Para eles, tu és uma aberração. Como eu", diz o Joker a Batman. Batman e Joker "são o reflexo um do outro e não se sabe bem quem é o claro e o escuro, o bem e o mal", comenta Pedro Vasconcelos, sociólogo do ISCTE. Duas faces da mesma moeda? "Não sei se não serão a mesma face de uma mesma moeda, que está sempre a rodar", observa.

A ambivalência de Batman, o justiceiro-vigilante que toma a lei nas suas mãos, é a ambivalência do filme: negro, mas para a multidão pipoqueira, saído dos "comics", próximo das narrativas do século XXI povoadas de insegurança e arranha-céus pós-11 de Setembro; "arty", mas "blockbuster". É um mundo de linhas vítreas e dias e noites brancas, da perenidade das linhas de horizonte das cidades perante o caos social que vive lá em baixo. Já não estamos no Kansas, nem na terra do CGI. O GPS tem de apontar para uma terra real, para a geografia de uma sociedade cada vez mais dividida entre o desejo de originalidade e a forma massificada como a ela acede, para um mundo em que o léxico do medo é incontornável.

É um filme de verdadeiros telhados de vidro, não é um filme de estúdio e de gárgulas no topo dos edifícios. "Fizemos logo saber às pessoas: este é um filme de 'location'", disse Nolan ao "New York Times". Com o "production designer" Nathan Crowley, que trabalha com o realizador desde "Insónia", desimpediu-se a Gotham de "Batman - O Início" (2005). Ali se move o cruzado com a sua capa negra, com um fato quase armadilhado de tão raiado e militarizado, a bordo do seu Tumbler e do seu Batpod (carro tipo tanque e motorizada, respectivamente), como um couraçado a mover-se por Bagdad. "Ele é um terrorista", acusam as forças do Bem de Gotham, já saturadas das ameaças do escorregadio Joker. E sim, a paisagem está marcada pelo 11 de Setembro, mas em referências, não em tributos. A indústria cultural "já está na fase do desabafo", comenta Paulo Prazeres, realizador e VJ, que no festival de BD ComicCon, em Nova Iorque, assistiu ao lançamento de um novo herói, apresentado como "o Capitão América da nossa geração", associado ao 11 de Setembro.

Os vilões em nós

Não há mão para o visceral Joker, para a língua que entra e sai de uma boca rasgada e borrada de vermelho - "Desde ["Que Teria Acontecido a] Baby Jane" que o "'bâton' não era tão assustador", postula o escritor Hank Stuever no "Washington Post" -, para o jogral de membros soltos, violentado por algo mais poderoso, por uma superinteligência, uma clarividência ensurdecedora, uma paixão pela anarquia, um trauma esquivo. "Para Bin Laden, o terror é uma arma estratégica. Para o Joker, os objectivos são o puro terror, o caos é o terror. Ele surge como o monstro absoluto, um puro demónio", comenta o sociólogo.

Este é o Joker dos romances gráficos "The Killing Joke" (Alan Moore e Bryan Bolland, 1988), de "Arkham Asylum: A Serious House on Serious Earth" (Grant Morrison e Dave McKean, 1989), é o Joker revitalizado por Frank Miller na mini-série (1986) de "comics" "The Dark Knight Returns". Aquele que dança, com Batman, um eterno tango fatal para dois.

Nos filmes, parece ser o Joker que mais está fascinado pela sua némesis. "Onde é que ele arranja aqueles maravilhosos brinquedos?", perguntava, invejoso, o Joker/Nicholson no filme de Tim Burton. "Tu completas-me", declara-se o Joker/Ledger no filme de Nolan. "No 'The Killing Joke', Batman acaba a rir com ele", lembra Pedro Vasconcelos.

Em 1940, a figura foi criada como um bobo, um "trickster", criatura mitológica que desafia as convenções - um desobediente. Bob Kane queria que ele fosse um assassino de massas, uma presciência de John Wayne Gacy (assassino dos anos 1970 nos EUA que se vestia de palhaço) que iria introduzir a anarquia em Gotham. Na sua origem, não só o "prankster", mas também a personagem de Conrad Veidt no filme mudo de 1928, "O Homem Que Ri", inspirado na história de Victor Hugo.

Ao longo das décadas, foi um rufia, um assaltante de bancos, um "dandy" (Cesar Romero, na série de TV), um pateta "durante os anos 1950, devido à censura que então caíra sobre a indústria de 'comics'", recorda Daniel Maia. E foi Jack Nicholson, que gritava: "Esta cidade precisa de um clister!" Agora, tornou-se Ledger. Uma esperteza aguda: "O que não te mata... torna-te mais estranho", diz o farsante no novo filme. "A primeiríssima versão, de Bob Kane, era bem mais temerosa e parecia-se mais com a representação do Heath Ledger", acrescenta Daniel Maia sobre a sua visão favorita do Joker.

É alguém que, tal como nos romances gráficos dos anos 80, é "um arquivilão, absoluta encarnação do mal, um sociopata" e que ao mesmo tempo "tem uma espécie de superlucidez". "É uma personagem que foi para lá das convenções e hipocrisias sociais", prossegue Pedro Vasconcelos. "A loucura também tem muito de liberdade e o louco parece saber sempre mais do que nós", refere Paulo Prazeres, fã de vilões, de Darth Vader a Joker. Por isso mesmo, entronizamos os heróis, mas fazemos o culto dos vilões. "Estamos fascinados pelo vilão em nós", teoriza Pedro Vasconcelos. "É a atracção típica do Carnaval, a possibilidade de inverter as regras do mundo. Eu sou o outro, já dizia Mário de Sá Carneiro."

Considera que, no momento histórico actual, "na modernidade, em que há uma tendência crescente de individualização, as personagens que são rebeldes são particularmente atraentes". Especialmente estas, em que entrevemos "um patamar de entendimento do mundo que ultrapassa a mentalidade convencional que achamos sempre que é fechada, limitada e que tem conotações negativas", remata Vasconcelos. "Gosto de pensar que o seu sucesso tem algo a ver com a fobia aos palhaços. Se pensarmos bem, a única 'competição' a nível da cultura pop será por parte do Ronald McDonald", ironiza Daniel Maia.

Mas ao mesmo tempo que adoramos a diferença, já tivemos a nossa dose de anarcas assassinos - de Michael Meyers ("Halloween") ao Jigsaw Killer ("Saw"), de Dexter Morgan a Tony Soprano. Já jogámos muito mais Grand Theft Auto, já vimos assassinos esteticamente aprazíveis e pintámos os códigos de uma vasta paleta de cinzentos. Até já vimos tortura em Abu Ghraib e tentámos evitar as execuções de Saddam Hussein ou Daniel Pearl no computador. Anestesiados?
Talvez não. A cultura impõe-nos dicotomias, o mundo organiza-se com narrativas em esquema, o Bem e o Mal estão sempre lá. Os impactos ainda se sentem, seja ao ver o Joker matar, seja ao vê-lo aceitar um espancamento com o sempiterno esgar. Ou ao vê-lo vestidinho de voluntária de hospital num travestismo hilariante. Ou seria horripilante?

E com este Joker o vilão da DC Comics vai continuar a atormentar-nos, porque se começou como um "boneco muito certinho", como diz Pedro Vasconcelos, "é cada vez mais um indivíduo descontrolado, sem traço certo". Paulo Prazeres recorda o "nexus" que lhe ficou na mente com "The Killing Joke". É que "o que basta para enlouquecer é ter um dia muito mau". "Podias ser tu, ainda que mais ou menos genial. Mas podias ser tu."

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