Avó e neto

Sokurov foi descoberto em Portugal com "Mãe e Filho". Foi há cerca de dez anos, mas depois disso, e apesar de o cineasta ser bastante prolífico e manter há décadas um ritmo de pelo menos um filme por ano, por cá só se estreou "Pai e Filho", de 2003. "Alexandra" é o terceiro Sokurov a estrear em Portugal. Talvez se pudesse chamar "Avó e Neto", porque é disso que se trata (do encontro entre uma avó e um neto), integrando-se naquilo que se vai tornando, dentro da obra do cineasta russo, uma "série" dedicada ao amor familiar (e ainda lhe falta um filme sobre o amor fraternal, que há uns anos manifestou intenção de fazer). Mas ao mesmo tempo é de muito mais do que apenas um encontro entre uma avó e um neto que "Alexandra" trata. Complexo e flutuante (tão flutuante como a câmara de Sokurov, novo mestre do "travelling" e, supomos, do "steadycam"), é um dos filmes mais ricos, mais misteriosos, mais interpelativos, que veremos este ano.

"Alexandra" mostra a visita de uma velha senhora (que se chama Aleksandra, Aleksandra Nikolayevna) ao seu neto, que é militar e está num aquartelamentoalgures na Chechénia, durante a guerra. A Chechénia, salvo erro, nunca é nomeada (apenas sabemos que tem que ser a Chechénia, de que o filme dá todas as pistas), e nenhuma referência cronológica éavançada. Durante algum tempo (umas horas? uns dias?), a senhora vagueará pelas instalações militares, conversará com o filho e com os outros soldados, passeará na cidade (semi-arruinada) e encontrará outras mulheres, outras avós, chechenas.

A senhora - no que é o primeiro sinal da elusiva complexidade de "Alexandra" - é interpretada porGalina Vishnevskaya, cantora de ópera russa, viúva de Mstislav Rostropovich. O filme anterior deSokurov, "Elegia da Vida" (de 2006, Rostropovich morreu em 2007), era aliás com eles os dois. Compreendese que Alexandra se passeie peloacampamento com altivez de diva e uma imperturbável serenidade, como se estivesse a pisar o terrenode todos os dias, ou como se fosse uma "star" que vai à frente de batalha animar os soldados. Tãoaltiva, serena e imperturbável que parece nem ter consciência do que ali se joga - mostram-lhe asKalashnikovs e os carros de assalto e ela sempre distante, sem que se perceba o que é mais irreal, se ela se o cenário em redor. O que não a impede de, com desconcertante casualidade, comentar o cheiro dascasernas, e perguntar se os soldados "não se podem lavar". Sokurov (é um costume seu) joga bastante comestas contradições entre presenças e referências profundamente físicas e a atmosfera quase etérea (ou onírica mas "plana", sem a ganga do onirismo) que é criada, entre outras coisas, pelos seus movimentos decâmara, lentos e suspensos, e pela omnipresença de música, em volume baixo e de efeito quase subliminar, na banda sonora.

A dado passo, assalta-nos a questão do "sentido", inevitável num cineasta como Sokurov, que tem um horror puritano à futilidade da arte e concebe o seu cinema com uma urgência quase missionária. Quem é esta mulher? É apenas "esta mulher" ou é um símbolo - um símbolo da Rússia, que sempre gostou de se representar como figura feminina e matriarcal (a "MãeRússia")?; um símbolo humanista, religioso, ecuménico, "todas as avós do mundo" (como nas cenas com as mulheres chechenas), capaz de aceitar com resignada sabedoria as divisões e os conflitos dos homens ao mesmo tempo que une todos no mesmo abraço (sendo certo que o humanismo sokuroviano não estámuito disponível para aceitar maniqueísmos nem admitir que seres humanos possam ser monstros)? Ou algo como a representação de uma ordem familiar antiga, que o neto tem problemas em aceitar e que, numa cena, recrimina? Talvez um pouco de tudo, denso que é o tecido do filme, mas em todo o caso a natureza ambígua desta personagem, alegórica ou imediata, é uma das razões do fascínio do filme.

Na cena mais extraordinária, pouco antes do final, ela volta, contudo, a ser a expressão mais simples e mais pungente da avó. É uma cena com o neto, estão os dois a sós - e é a mais bela cena de amor que vimos em muito tempo. Como no "Pai e Filho" e na sua célebre cena de abertura, há uma dimensão física fortíssima nos abraços e nas carícias entre a avó e o neto, uma coisa quase erótica, a expressão doslimites físicos de um amor de natureza não-sexual (e daí a impressão de angústia, de desesperada voracidade). O que é impressionante, e profundamentecomovente, é que seja nessa cena que Alexandra se revela como mulher na expectativa da morte, revoltada contra a finitude ("o meu corpo está velho, mas a minha alma dava para viver mais uma vida") e em lamento pela juventude perdida: é apenas uma mulher envelhecida, com saudades do "cheiro a que os homens às vezes cheiram", como diz ao neto abraçado. Se Sokurov é um "cineasta espiritual", sabe que não se pode pensar o espírito sem o corpo. É o drama de quase todos os filmes de Sokurov.

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