As juventudes de Coppola

Não havia nenhum filme realizado por Francis Ford Coppola havia dez anos, quando o cineasta americano estreou "The Rainmaker" (1997), "thriller" judicial baseado num romance de John Grisham. Nunca na sua carreira existira um interregno tão grande, pelo que deu para pensar que não voltaria a haver nenhum filme realizado por Coppola - que estava mais interessado em cuidar das suas vinhas na Califórnia e, no que ao cinema diz respeito, satisfeito com o apoio (como produtor) às obras dos filhos Sofia e Roman.

Pouco importa o que pensemos deste estranho "Uma Segunda Juventude", que esta semana se estreia, o filme que veio quebrar um silêncio de dez anos: significa que Francis Ford Coppola, um dos maiores realizadores dos últimos 40 anos e possivelmente o maior dos americanos no mesmo período, ainda não acabou.

Estranho filme, "Uma Segunda Juventude". Quase totalmente produzido "off-Hollywood", contando com financiamentos alemães, franceses, italianos e romenos, rodado na Europa (Roménia e Suíça, sobretudo), e praticamente sem actores americanos - descontando um breve "cameo" de Matt Damon, os protagonistas são o inglês Tim Roth, o suíço-alemão Bruno Ganz e a alemã de origem romena Alexandra Maria Lara (a namorada de Ian Curtis no "Control" de Anton Corbijn). Nunca Coppola se tinha afastado tanto da Hollywood que, nos anos 1970, ajudou a reconstruir.

"Uma Segunda Juventude" - a estranheza não se fica por aí - adapta um romance do romeno Mircea Eliade (editado entre nós pela Bico de Pena) e é uma variação esotérica e "transcultural" (são evocadas diversas referências orientalistas) sobre o mito da "eterna juventude". Um homem de 70 anos é fulminado por um raio e, quando as queimaduras saram, o seu corpo passou a ser o de um homem de 40. Mais do que uma "segunda juventude" é uma "juventude sem juventude", como diz o título original ("Youth without Youth").

Não precisamos que Coppola nos confirme (como, em entrevistas, tem confirmado) que se trata de um filme "muito pessoal", porque desconfiamos logo que o seja. A "juventude", a sua recuperação, os seus sonhos, mas também a sua impossibilidade ou a sua maldição, tudo isto são temas seus, percorrem vários dos seus filmes (mesmo os "Padrinhos"), e Coppola já mergulhou neles profundamente (com mais evidência em "Peggy Sue Casou-se", de 1986). Não era outra a questão mais forte em "Drácula de Bram Stoker" (1992), que como "Uma Segunda Juventude" se passava em ambiente... romeno. Mas o que quer dizer, para Coppola, uma "juventude sem juventude"? Está a falar de si agora, de um recém-redescoberto vigor criativo, ou de um sonho mais ou menos quimérico? Ou alude à sua juventude propriamente dita, que teria sido vivida "sem juventude"?

Na iminência do fracasso

É preciso perceber que Coppola viveu sempre na iminência do fracasso e que na sua carreira o fracasso foi eventualmente mais determinante do que o sucesso, para além de serem, o sucesso e o fracasso, coisas que se podem confundir, como veremos. E que foram muitas as vezes em que se anunciou o fim de Francis Ford Coppola. Quando estava na selva das Filipinas a rodar "Apocalypse Now" (1979), a gastar milhões de dólares por dia e a produção a desafiar o caos a cada instante, dizia-se que se ia espalhar ao comprido, dizia-se que dali não podia sair nada com pés e cabeça. Mas não se espalhou, e pelo contrário "Apocalypse Now" juntou-se aos "Padrinhos" na galeria dos títulos lendários de Coppola, como eles uma das obras-primas do cinema americano da idade pós-clássica. A problemática rodagem de "Apocalypse Now" até terá reforçado uma crença de Coppola, a de que "um filme que não corra o risco de ser um grande fracasso nunca pode ser um filme muito bom" - o que sendo provavelmente verdade não significa que se possa sempre iludir o fracasso.

Como Coppola percebeu na pele no seu filme seguinte, "Do Fundo do Coração" (1982), outro "filme de risco" que encarou de frente a possibilidade do fracasso, mas sem conseguir esquivar-se-lhe. Temeu-se outra vez (estávamos no princípio da década de 1980) o fim de Coppola. O "flop" tremendo de "Do Fundo do Coração" deixou-o afogado em dívidas e fez ruir o seu grande sonho, a Zoetrope, a casa de produção que ele imaginara poder ser uma "major" para filmes de autores vindos de todo o mundo (Michael Powell, Jean-Luc Godard, Wim Wenders: todos andaram por lá). Os anos 1980, Coppola passou-os a rodar "pequenos filmes" - "Rumble Fish" (1983), "Peggy Sue Casou-se" -, que precisava de fazer para pagar dívidas, enquanto toda a gente esperava pelo seu regresso aos "grandes filmes".

No final da década, e no princípio da de 1990, Coppola parecia estar em condições de regressar aos filmes com o tipo de dimensão dos seus célebres títulos dos anos 70. Fez a terceira parte do "Padrinho" e logo a seguir veio "Drácula" e o seu épico onírico. Mas depois o enigmático eclipse: nos 15 anos entre "Drácula" e "Uma Segunda Juventude", apenas dois filmes, "Jack" (1996) (sobre um miúdo com corpo de velho - "voilà") e a tal, elegantíssima, adaptação de Grisham. Era outra vez o "fim" de Coppola, pretensamente desinteressado do cinema, recorrendo a ele apenas com preocupações alimentícias, agora para ajudar na gestão das vinhas, como nos anos 1980 para pagar as dívidas da Zoetrope.

A questão é que, confessadamente, o sonho de Coppola sempre esteve mais perto dos "pequenos filmes" do que dos "grandes". O que ele queria ser era um autor-artesão, fazer filmes pessoais, baseados em argumentos seus. Era o que a sua juventude queria, mas não foi exactamente o que a sua juventude teve. Catapultado pelo sucesso do "Padrinho" (1972), para Coppola tornou-se mais difícil voltar, no imediato, a registos de produção mais modestos. Se fez "The Conversation" (1975), um "filme pessoal" que ainda hoje é o seu preferido, foi porque o impôs como condição para rodar a segunda parte do "Padrinho" (1974). Apesar da Palma de Ouro em Cannes, "The Conversation" viveu esmagado pela vizinhança, dos "Padrinhos" e, depois, de "Apocalypse Now". Comentando o relativo apagamento de "Conversation", Coppola disse: "Ninguém o quis ver. É um grande drama para mim: ninguém parece interessado nos filmes que eu realmente quero fazer."

A causa do problema Coppola aponta-a claramente: "O Padrinho". Palavras suas numa entrevista à "New Yorker", em 1997: "De várias maneiras arruinou-me. Fez a minha carreira seguir por um lado, em vez de por onde eu queria que ela fosse, que era ser realizador-argumentista e fazer trabalho original. (...) Basicamente, "O Padrinho" fez-me violar muitas das esperanças que tinha para mim, naquela idade." E mais à frente: "Nada que tenha a ver com "O Padrinho" me dá muito prazer. (...) Foi uma experiência horrível, tenho náuseas só de pensar nisso." Para perceber isto, é preciso voltar à Hollywood de princípios de 1970, e ao tempo em que uma geração (os "movie brats": Coppola, Scorsese, Spielberg, entre vários outros) lutava para garantir ao mesmo tempo a liberdade e um lugar na linha da frente da produção americana. Deles todos, Coppola era o "irmão mais velho", o que teve de se tornar adulto mais cedo - os outros dependiam dele. John Milius (que realizou "Dillinger" e colaborou com Coppola no argumento de "Apocalypse Now"): "Sempre dissemos que éramos um cavalo de Tróia, mas não era verdade, porque quem lá estava dentro a segurar o portão era Coppola. Ninguém, nem Spielberg, nem Lucas, teriam existido sem a ajuda de Coppola." Walter Murch, técnico de som e fiel colaborador do cineasta (ainda agora em "Uma Segunda Juventude"), explicou a importância de que se revestia o sucesso de "O Padrinho", recorrendo a metáforas com barcos: "Nós só queríamos ter os nossos barquinhos a remos, fazer os nossos filmes de 700 mil dólares." Mas para garantirem que podiam levar os barquinhos a remos para o lago precisavam de um "barco a motor" que lhes abrisse o caminho - e o "barco a motor", para angústia de Coppola, foi "O Padrinho". Ajudou os seus amigos mais novos, mas tornou-se-lhe impossível voltar a brincar com barcos a remos. Coppola era "a big boy now", como no título do seu filme de 1966.

Quando tinha 8 anos de idade, sofreu de poliomielite e passou um ano em casa, acamado, sem poder mexer as pernas. Sozinho no quarto, entreteve-se a ler e a inventar brinquedos, e a encenar espectáculos de marionetas para ele próprio. Em 1988, entrevistado pelo "New York Times", dizia, comentando o seu afastamento de Hollywood: "A indústria precisa de tipos que estejam disponíveis para fazer o "Rambo 7" e o "Rambo 8", e eu preciso de ser um tipo sozinho, como era quando tive poliomielite." É mais do que certo que foi esse tempo da poliomielite que Coppola foi agora procurar à Roménia. Uma juventude sem juventude.

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