A Garbo em Clooney

Lembramo-nos que no Festival de Veneza, o final de "Michael Clayton" - um plano de vários minutos, o rosto de George Clooney, tudo num táxi - foi celebrado, havendo quem o comparasse ao final de "Rainha Cristina" (o filme de Rouben Mamoulian de 1933 em que Greta Garbo, sim, ela, nem mais nem menos, ficava a olhar, e assim nos deixava e assim deixava que o seu rosto fosse ele próprio um ecrã, coisa em branco).

Engraçado este delírio estapafúrdio - e em nada belisca a masculinidade de Clooney, porque em termos de masculinidade Garbo... É um delírio que tem a ver, claro, com incorrigível "divismo" da imprensa italiana. Mas é de facto um plano com um segredo qualquer, e tem qualquer coisa de exaltante esperar por ele, esperar com ele: depois de tudo o que ficou para trás no filme, é a tomada de consciência de uma personagem, um homem que faz o "dirty job" para uma empresa de advogados, e é aí, nesse plano, que Clayton/Clooney se decide pela moral e não apenas pelas contingências da sobrevivência.

Esse é o momento da redenção, é assim que se costuma dizer. Mas se esse plano funciona é porque é suficientemente aberto (está longe de ser um final feliz) e "branco" para que o carreguemos emocionalmente - num plano tão parado, muita coisa se passa. É o momento "certo na altura certa", para citar Clooney, que utilizou em Veneza essas palavras para falar do filme e da altura em que ele aparece: hoje. "Michael Clayton", estreia na longa de Tony Gilroy, o argumentista da série "Bourne...", serpenteia pelo mundo das corporações. É filho de uma "família", o "cinema liberal" que Hollywood fez nos anos 1970 - Alan Pakula, Sidney Lumet ou Sidney Pollack, que não por acaso aqui também intérprete e produtor - , assumindo-o não apenas por cinefilia, mas por determinação, arriscaríamos, por militância cívica. Como se dissesse: isto faz sentido hoje e isto é falar sobre hoje (entre outras coisas diz-nos isso o tal plano final...).

Podemos falar, ainda, da curiosidade com que "Michael Clayton" olha para o mundo das corporações e dos advogados, curiosidade em relação a tudo o que é humano, quer sejam os "maus da fita" (Tilda Swinton), quer sejam os "loucos" que denunciam a corrupção (Tom Wilkinson, numa "drive" suicidária que lembra o Peter Finch de "Network", de Lumet). Mas aí teremos de tropeçar na evidência de que há, excessivamente, "filme de argumentista": o preciosismo em relação aos pormenores - foi Gilroy que explicitou a sua obsessão (como é que ele disse?)..."molecular" - multiplica personagens e situações que saturam o filme com informação, dispersam energia, prejudicam a nitidez, o recorte, da estrutura global.

Mesmo assim: inteligente, complexo, e sobre pessoas... contraditórias.

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